segunda-feira, 17 de março de 2014

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“Tal como os doutores da Igreja, os médicos estavam constantemente preocupados com as ameaças infernais. Para eles, como para a sociedade na qual se inseriam, o diabo era o grande causador das doenças, fossem elas de ordem corporal ou espiritual. Assim, uma das finalidades dos seus livros era a difusão de conselhos contra as armadilhas diabólicas. O demônio difundido por esses doutores era uma criatura poderosíssima e capaz de produzir toda sorte de males, fosse direta ou com a ajuda das duas aliadas, as bruxas e feiticeiras. “Não há enfermidade a que seja tributária a natureza humana que os feitiços não possam produzir com a virtude diabólica que em si têm...”, comentou o médico Bernardo Pereira. 
(...) Brás Luís de Abreu, outro médico de renome, mostrava entusiasmo semelhante em relação aos remédios oferecidos pela Igreja, principalmente quando pesava a suspeita de o mal ter sido provocado por algum feiticeiro. Após discorrer sobre a facilidade com que esses indivíduos provocavam doenças, lembrava que “... contra todos estes inimigos da vida humana e para vencer os males que eles nos comunicam é o mais poderoso alexifármaco e o remédio mais eficaz o uso de todos os sacramentos da Igreja. Primeiramente o batismo a quem ainda não o tivesse recebido, (depois)... o sacrossanto sacrifício da missa, o repetido uso de água benta..., o sinal da cruz..., relíquias dos santos..., as formas que chamamos Agnus Dei..., as orações e ladainhas... e sobretudo uma fé viva, sincera e pura em Deus, resignando-nos em tudo na Sua divina vontade e confessando que só Ele é o verdadeiro médico”. Nos quatro tratados mencionados – acentuadamente em Bernardo Pereira e Brás de Abreu – existe um fato surpreendente e por isso merece ser ressaltado: teólogos e demonólogos são citados com muito mais frequência do que os nomes de médicos e demais indivíduos ligados ao saber científico. Por tratar-se de livros de medicina, as alusões a Hipócrates, Galeno e Avicena, por exemplo, são raríssimas se comparadas ao número de vezes que aparecem referências aos nomes de Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Del Rio, De Lancre, Sprenger, Torreblanca e Vale de Moura, além de vários autores de manuais de exorcismos. Da leitura dessas obras infere-se também que os livros de medicina funcionaram como fonte importantíssima de divulgação dos grandes tratados da demonologia europeia em Portugal. (...)

Dentre os remédios espirituais mais divulgados pelos médicos portugueses estavam os exorcismos, e por mais estranho que possa parecer foram eles os grandes apologistas desses rituais. Nada existe de paradoxal ou extraordinário nesta conclusão se lembrarmos que a medicina, ainda bem restrita, muitas vezes necessitava dos argumentos da demonologia para legitimar as suas próprias fraquezas. Incapazes de compreender as leis que regulavam o próprio funcionamento do corpo, muitas vezes os médicos usavam as “teorias” dos demonólogos como espécie de “ciência auxiliar” que os ajudava a diagnosticar as doenças e a justificar os limites da medicina, já que aquilo que não se compreendia era logo imputado ao Maligno.”
“No período precedente as reformas do ensino superior, o aprendizado da medicina fazia-se mediante a leitura dos textos latinos de Hipócrates, Galeno e seus comentadores árabes. Formulada pelos gregos e posteriormente ampliada por Galeno, a teoria da existência dos quatro humores fundamentais do organismo (sangue, fleuma, bile e bile negra ou humor melancólico) vigorou na medicina luso-brasileira até uma época bem avançada do século XVIII. Para a conservação da saúde, os humores deveriam estar presentes no organismo em quantidades proporcionadas e equilibradas. Caso faltasse ou sobrasse alguma dessas substâncias, tinha-se o corpo desequilibrado. De acordo com este sistema, a fonte do sangue era o coração; a fleuma originava-se no cérebro; a bile, no fígado, e a bile negra ou humor melancólico tinha sua sede no baço. Humor melancólico, semelhante à noite e às trevas, a bile negra era então considerada o humor preferido do diabo, e assim qualquer disfunção relacionada a esta substância facilitava a sua entrada no corpo do indivíduo.”
“Grosso modo, os manuais que circularam no mundo luso-brasileiro entre os séculos XVII e XVIII apresentavam grande semelhança no que diz respeito à organização temática. Em geral, havia uma discussão mais ampla sobre o poder diabólico e os motivos que impulsionavam o Criador a concedê-lo. Assim, ao mesmo tempo que exaltavam as capacidades diabólicas, atitude comum a todos os autores que trataram do assunto, explicavam por que Deus permitia a entrada do demônio no corpo dos homens. Três razões justificavam a concessão divina, escreveu Pinamonte, sendo a primeira para provocar a “... confusão do demônio; a segunda para o bem dos homens, e a terceira, para a glória de Deus”. Induzir o Maligno a atormentar os humanos era uma forma de mostrar o quanto o poder diabólico era inferior em relação ao divino, pois diante das palavras dos exorcistas o agente infernal recuava e finalmente era expulso. Segundo alguns autores que se ocuparam do tema, muitos indivíduos eram atacados por terem se afastado da verdadeira fé. Assim, a vexação levava ao arrependimento e era autorizada justamente para mostrar a necessidade de maior aproximação de Deus e dos preceitos religiosos.”
“A certa altura do século XVIII, alguns setores mais cautelosos e céticos da Igreja já começaram a perceber que, muitas vezes, era o próprio clero (em sua insistente identificação de casos médicos onde o exorcismo deveria ser aplicado) o responsável pela multiplicação dos demônios.”
“Quando formulou a ideia do Desencantamento do mundo, Max Weber apontou a magia como o mais forte obstáculo à racionalização econômica do universo. A concepção de um mundo regido por forças mágicas é totalmente incompatível com a crença na capacidade humana de gerar benefícios à sociedade e com o desenvolvimento tecnológico. Na verdade, a magia aparece como empecilho à técnica impondo inúmeros obstáculos ao seu desenvolvimento, e assim a ascensão da técnica só foi possível devido ao declínio da magia. O triunfo da tecnologia no mundo ocidental deve-se principalmente ao fato de que na Europa, devido a fatores religiosos e intelectuais, foi mais fácil erradicar as crenças mágicas do que em outros lugares. Um ambiente intelectual favorável, nutrido pelo cristianismo, pela tradição racionalista da Antiguidade clássica e agora, fortalecido pela revolução científica do século XVII, induzia as sociedades europeias a um gradual distanciamento dos sistemas mágicos.”

     “A especificidade do caso português foi em grande parte condicionada pela influência exercida pela filosofia de Santo Tomás de Aquino na formação intelectual das elites. Nenhum aspecto da cultura e do pensamento permaneceu alheio ao aquinense, incluindo a magia, a demonologia e demais sistemas afins. Para Santo Tomás, o diabo era uma criatura poderosíssima, porém, nada que se comparasse ao infinito poder de Deus. Assim, uma vez que entendiam que as ações do demônio estavam submetidas ao Criador e, de certa forma, controladas, os portugueses acabaram não se envolvendo na caça às bruxas com a mesma intensidade de seus vizinhos europeus, prevalecendo uma visão relativamente cética em relação ao fenômeno da bruxaria e da demonologia.”
“A noção que se tinha até certa altura do século XVIII era essencialmente tomista. Neste sistema eram consideradas superstições a idolatria, a magia, a adivinhação, a vã observância e o malefício. Com o enfraquecimento da Escolástica, estas noções vão se alterar profundamente. Agora, o que as camadas letradas passam a designar como superstições são as práticas e crenças de indivíduos considerados ignorantes por conferirem superioridade ao sobrenatural em detrimento de critérios racionais. Se ao tempo em que as elites nutriam-se no tomismo, não era supersticioso crer em bruxas, feiticeiras e outros seres imaginários, com o recuo deste sistema, tais crenças tornaram-se absolutamente intoleráveis e passaram a ser vistas como supersticiosas.
Alguns sintomas desta mudança de perspectiva em relação às superstições podem ser observadas em um manuscrito existente na Biblioteca da Ajuda – de 1779 – intitulado Superstições do vulgo. Trata-se de um documento onde são descritas diversas formas de comportamentos e crenças considerados supersticiosos. Nesta categoria, o autor do documento aponta o costume de se jogar fora toda a água das casas onde tivesse morrido alguém, já que era crença corrente que a alma do morto podia voltar para banhar-se nela; a vidência através da água; a metempsicose; a crença na influência da Lua na determinação dos acontecimentos cotidianos; o uso de amuletos e medicamentos exóticos nas enfermidades e, finalmente, a crença em bruxas, feiticeiras e nos malefícios perpetrados por eles.”
“Transformada em tribunal régio a partir de 1769, a Inquisição foi utilizada como braço direito do Estado na luta em prol das inovações culturais e na remoção dos entraves considerados incompatíveis com o pensamento racional. Assim, à investida da Mesa Censória contra as superstições soma-se a promulgação do último regimento inquisitorial em 1774. Mais preocupada com a difusão da maçonaria, com a questão do sigilismo e com formas de heresias consideradas mais ameaçadoras naquele momento, a Inquisição passa a tratar os assuntos relacionados às artes mágicas de maneira bem diferente do que fizera até então. Bruxos, feiticeiros, astrólogos e pessoas que se diziam videntes mudaram radicalmente de estatuto. De portadores de capacidades sobrenaturais, tais indivíduos passaram a ser considerados charlatães. Admitida a impossibilidade do pacto diabólico, os bruxos e feiticeiros não são mais tratados como hereges, mas antes como doentes mentais ou exploradores da credulidade dos rústicos. Tais práticas são descriminalizadas, e daí em diante o Hospital Real de Todos os Santos viria a substituir os cárceres do Santo Ofício. Já então se percebe que aqueles sistemas ficaram para trás, pois, esclarece o Regimento, neste século “iluminado seria incompatível com a sisudez e decoro das Mesas do Santo Ofício instruírem volumosos processos com formalidades jurídicas e sérias a respeito de uns delitos ideais e fantásticos, com a consequência de que a mesma seriedade com que fossem tratados continuasse em lhes fazer ganhar maior crença nos povos, para neles multiplicarem tantos sequazes das doutrinas, de terem verdadeira existência os sobreditos enganos e imposturas quanto são os púsiles e os ignorantes, quando, pelo contrário, sendo desprezados e ridicularizados, virão logo a extinguir-se, como a experiência tem mostrado entre as nações mais polidas da Europa”.*
A mudança de atitude do Santo Ofício em relação às práticas e crenças mágico-demonológicas aparece de forma bem clara no processo de Sebastião, vaqueiro sentenciado pela Inquisição de Évora em 1778 por praticar algumas ações destinadas a descobrir autores e malefícios e lançadores de feitiços. Curiosamente, o alvo dos inquisidores direciona-se não apenas ao réu, mas também aos indivíduos que davam crédito a semelhantes “patranhas desta natureza e ridicularias só aplicadas e cridas por gente sem crítica, sem instrução ou totalmente fanática, pois nem uma pessoa sisuda e circunspecta se persuadiu até agora que fosse compatível com a virtude sólida semelhantes visagens, nem que estas e todo aquele aparatoso cerimonialístico e inalterável aranzel de despropósitos tivesse conexão alguma com o fim a que se persuade, aplicado para se esperar dele um efeito tão extraordinário como é o de alcançar os sobreditos conhecimentos, estando estes totalmente fora de ordem e forças da natureza e poder humano, devendo por isto crer-se como pura invenção de conhecidos mandriões e mendigos ociosos que descobrem nos mencionados fatos um subsídio e pronto remédio para permanecerem na preguiça, ganhando alimento sem cansar o corpo com trabalho e iludindo e enredando o miserável povo ignorante com seus fingimentos, sendo com eles motivos de mil juízos temerários e todos falsos sobre a adivinhação de quem será a figura da bruxa que originou aquele mal, passando muitas vezes as pessoas que se julgam ofendidas a cometer o absurdo de espancar aquela ou aquele miserável que a sua ideia vaga e incerta lhe ficou delinquente...”.** Em dia com o Regimento de 1774, os inquisidores já não associavam tais práticas às heresias, censurando-as antes pelo charlatanismo de seu autor e ainda pelo caráter quimérico e supersticioso daquelas práticas.
Pelo esclarecido Regimento de 1774, vê-se que o conceito de superstição, que antes servia para definir a oposição aos bons costumes da religião, adquiriu sentido bem mais abrangente. Nele definem-se como supersticiosos “todos aqueles fatos, escritos, palavras e cerimônias que nenhuma virtude natural podem ter para produzirem os efeitos a que se querem ostentar dirigidos; segundo, todos aqueles atos nos quais os mesmos efeitos senão atribuem a Deus nem à natureza, mas sim e tão somente às fátuas operações dos mágicos, sortílegos e astrólogos; terceiro, aquela persuasão que pretendem fazer crível, que os referidos fatos têm per si mesmos sem serem instituídos por Deus nem pela Igreja podem ser causa de outros efeitos, os quais de nenhuma forma se podem atribuir à natureza; quarto, a crença ou persuasão de que os feitiços, sortilégios, operações divinas e outras semelhantes obram por virtude e força de pactos implícitos ou explícitos com o demônio”.* É certo que as condições sociais, políticas e culturais não acompanharam o ritmo da legislação, mas não restam dúvidas de que esta mudança foi um passo decisivo para uma tomada de consciência da coletividade no sentido de romper com a tradição cristã que pregava a efetividade do poder diabólico.”

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