domingo, 2 de março de 2014

Uma história numa frase

Acabei de receber e republico. Vale a pena ler!

Texto escrito por José de Souza Castro:
O julgamento foi um espetáculo, uma farsa, uma maneira ridícula de procurar a verdade. Mas, como pude perceber, a verdade não era importante. Talvez em outros tempos um julgamento fosse um exercício de apresentação dos fatos, a busca pela verdade e a descoberta da justiça. Hoje um julgamento é um concurso em que um lado vencerá e o outro perderá. Cada lado espera que o outro se curve às regras ou trapaceie, então nenhum lado faz um jogo justo. A verdade se perde na disputa.
Não, não estou escrevendo sobre a Ação Penal 470, o chamado julgamento do mensalão petista. Nem fui eu quem escreveu o relato acima. Trata-se simplesmente de um parágrafo de “O manipulador”, o último livro de John Grisham, publicado em 2012 nos Estados Unidos e, no ano seguinte, no Brasil, pela Rocco, traduzido por Maira Parula. (E que ainda não acabei de ler.)
Nada a ver com a AP 470. Mas me faz pensar nesse processo, tendo em vista o muito que já se escreveu sobre esse julgamento do Supremo Tribunal Federal.
Desde logo vou avisando que sou um cético em relação ao judiciário. Cheguei até a escrever um livro que faz parte da biblioteca deste blog (Injustiçados – o Caso Portilho), antes mesmo de conhecer esse famoso trecho do discurso de Rui Barbosa no Senado sobre o caso do Satélite II: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
Ninguém se lembra mais desse caso que provavelmente foi famoso nos tempos de Rui Barbosa, mas o que o jurista baiano escreveu continua inesquecível, porque é muito atual.
A questão que se apresenta é esta: houve injustiça no julgamento da AP 470 ou na aplicação das penas aos condenados, apesar da inquestionável maioria dos que acham, principalmente na imprensa, que a maioria dos juízes do Supremo acertou ao mandar para a prisão José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares e tantos outros?
No dizer de céticos como Wentworth Dillon, poeta inglês que viveu no século 17, “a multidão está sempre errada”. E já que me lembrei desse inglês, não custa citar Charles Dickens, nascido na mesma Inglaterra dois séculos depois, que dedicou parte de seu talento de crítico social para escrever em 1853 o romance “Bleak House”. A descrição das leis e do judiciário britânico de seu tempo talvez abale a confiança do leitor brasileiro honrado que ainda considera os ingleses que exploraram o ouro das Minas Gerais como paradigmas de civilização. A estes, serve de consolo uma frase de Samuel Johnson, pensador inglês que viveu um século antes de Dickens: “É melhor sofrer injustiça do que fazê-la, e preferível ser às vezes enganado do que não confiar.”
Aos que, como eu, preferem confiar desconfiando, talvez fosse mais prudente seguir o conselho de Siro, que na Roma antiga pensava que o remédio para os males é esquecê-los. Não sei se Siro chegou a conhecer Jesus, que não esqueceu e foi crucificado.
Sem querer nada parecido para os leitores, acho perfeitamente possível esquecer Joaquim Barbosa, o grande protagonista da AP 470, que logo estará deixando a presidência do Supremo e talvez nem seja eleito para outro cargo importante. Mas, como aquela frase de Rui Barbosa (e outras citadas aqui), talvez dure muito mais na memória escrita, depois que todos nós tivermos partido desta vida (para melhor, espero), esta frase dele numa das últimas sessões do julgamento: “Foi feito para isso sim!”.
Não saberia explicar a importância dessa frase com a competência de Janio de Freitas, na “Folha de S. Paulo” deste domingo. Como sei que alguns leitores deste blog não leem o jornal, reproduzo abaixo o artigo intitulado “Uma frase imensa”, sem pedir permissão ao autor e ao editor, na esperança de que nenhum dos dois vá se importar:
"Palavras simples, para uma frase simples. E, no entanto, talvez a mais importante frase dita no Supremo Tribunal Federal nos 29 anos desde a queda da ditadura.
Um ministro considerara importante demonstrar que determinadas penas, aplicadas pelo STF, foram agravadas desproporcionalmente, em até mais 75% do que as aplicadas a crimes de maior gravidade. Valeu-se de percentuais para dar ideia quantitativa dos agravamentos desproporcionais. Diante da reação temperamental de um colega, o ministro suscitou a hipótese de que o abandono da técnica judicial, para agravar mais as penas, visasse um destes dois objetivos: evitar o reconhecimento de que o crime estava prescrito ou impedir que os réus gozassem do direito ao regime semiaberto de prisão, em vez do regime fechado a que foram condenados.
Hipótese de gritante insensatez. Imaginar a mais alta corte do país a fraudar os princípios básicos de aplicação de justiça, com a concordância da maioria de seus integrantes, é admitir a ruína do sistema de Justiça do país. A função do Supremo na democracia é sustentar esse sistema, viga mestra do Estado de Direito.
O ministro mal concluiu a hipótese, porém, quando alguém bradou no Supremo Tribunal Federal: "Foi feito para isso sim!". Alguém, não. O próprio presidente do Supremo Tribunal Federal e presidente do Conselho Nacional de Justiça. Ninguém no país, tanto pelos cargos como pela intimidade com o caso discutido, em melhor situação para dar autenticidade ao revelado por sua incontinência agressiva.
Não faz diferença se a manipulação do agravamento de pena se deu em tal ou qual processo, contra tais ou quais réus. O sentido do que "foi feito" não mudaria conforme o processo ou os réus. O que "foi feito" não o foi, com toda a certeza, por motivos materiais. Nem por motivos religiosos. Nem por motivos jurídicos, como evidenciado pela inexistência de justificação, teórica ou prática, pelos autores da manipulação, depois de desnudada pelo presidente do Supremo.
Restam, pois, motivos políticos. E nem isso importa para o sentido essencial do que "foi feito", que é renegar um valor básico do direito brasileiro --a combinação de prioridade aos direitos do réu e segurança do julgamento-- e o de fazê-lo com a violação dos requisitos de equilíbrio e coerência delimitados em leis.
Quaisquer que fossem os seus motivos, o que "foi feito" só foi possível pela presença de um fator recente no Supremo Tribunal Federal: a truculência. "O Estado de S. Paulo" reagiu com forte editorial na sexta-feira, mas a tolerância com a truculência tem sido a regra geral, inclusive na maioria do próprio Supremo. A sem-cerimônia com que o presidente excede os seus poderes e interfere, com brutalidade, nas falas de ministros, só se compara à facilidade com que lhes distribui insultos. E, como sempre, a truculência faz adeptos: a adesão do decano da corte, outrora muito zeloso de tal condição, foi agora exibida outra vez com um discurso, a título de voto, tão raivoso e descontrolado que pareceu, até no vocabulário, imitação de Carlos Lacerda nos seus piores momentos.
Nomes? Não fazem hoje e não farão diferença, quando acharmos que teria sido melhor não nos curvarmos tanto à truculência."
(Fonte: http://kikacastro.com.br/2014/03/02/uma-historia-numa-frase/)

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