domingo, 6 de abril de 2014

Continua a internacionalização da saúde




O que teria levado o fundo de investimentos norte-americano Bain Capital a decidir por uma aquisição bilionária no setor da saúde no Brasil?


A opção que se instalou entre os principais formuladores de políticas públicas a respeito do caminho para solucionar os serviços previstos como direitos constitucionais tem se revelado um verdadeiro desastre. A grande contradição é que as diretrizes estabelecidas na Constituição em 1988 têm sido desconsideradas pelos sucessivos governos, todos os que chegaram à Esplanada desde então.

As decisões mais importantes foram na contramão do projeto estratégico de construir as bases para um modelo inspirado, de alguma forma, na experiência do estado de bem estar dos países europeus. A dinâmica observada em terras tupiniquins foi a transformação generalizada dos serviços públicos – a exemplo do que ocorre com saúde e educação - em simples mercadorias.

A própria terminologia adotada para avaliar esses setores foi incorporando expressões e conceitos tais como oferta, demanda, preço, lucro, rentabilidade, falência, contrato, remuneração, mensalidade e muitos outros. As empresas passaram a se multiplicar na condição de operadoras e proprietárias de escolas, faculdades, universidades, hospitais, laboratórios, centros clínicos, planos de saúde e outros nichos de “mercado”. Pouco a pouco, direitos constitucionais e obrigações de prestação pelo Estado são transformados em espaço para acumulação de capital privado.

Mercantilização da educação e da saúde

O movimento se consolida como uma via de mão dupla. De um lado, por meio da política de contenção de gastos públicos nas áreas sociais. De outro lado, pelo estímulo à constituição de empreendimentos comerciais privados para dar conta da oferta de serviços de saúde e educação, entre outros, de forma ampla para o conjunto da sociedade. O sucateamento da estrutura mantida pelo setor público se vê agravado pela irresponsabilidade com que são tratadas as políticas salariais e de recursos humanos desses profissionais na esfera do Estado.

O chamado processo de “mercantilização” dos bens públicos compromete a própria capacidade desse sistema em oferecer padrões mínimos de qualidade no atendimento das necessidades da maioria da população. É inegável que a administração pública, por outro lado, tampouco está em condições de oferecer o que dela se espera nesse quesito. Mas o fato de se exigir um cartão de plano de saúde ou um cheque pré-datado como pré-requisito para se iniciar o atendimento é uma verdadeira afronta ao espírito republicano. O recurso às condições e às regras do mercado revela o flagrante desrespeito de elementos básicos da cidadania em nome do respeito às regras do contrato comercial privado.

Ao transformar saúde e educação em mercadorias, o caminho de retorno está praticamente bloqueado. Já a opção do serviço oferecido pelo Estado pode ser resolvida a médio prazo, caso haja vontade política e recursos orçamentários assegurados. O maior exemplo é o próprio reconhecimento internacional do SUS.

As principais instituições que trabalham e analisam modelos públicos de oferta de serviços de saúde pelo mundo afora não cansam de citar o nosso modelo como referência a ser seguida.

Serviços públicos ou oferta de mercadorias?

Um dos principais aspectos da privatização da saúde e da educação é a perda da referência do próprio negócio. As preocupações com qualidade dos serviços e o bem- estar dos atendidos são substituídas pela busca incessante de lucro como a única razão de ser do empreendimento. As tendências à concentração e à centralização também se fazem presentes, uma vez que os ganhos de escala permitem a redução das despesas operacionais. No jargão do financês, o negócio torna-se mais rentável graças aos “custos marginais decrescentes”. O modelo de mega-conglomerados passa a dominar os setores e a questão da capacidade financeira também passa a ser uma variável chave na análise da gestão.

Dessa forma, os passos seguintes verificados nos setores tornaram-se absolutamente previsíveis. Trata-se da passagem da mercantilização para a internacionalização de tais atividades. Grandes grupos estrangeiros têm se movimentado nessa direção e estão adquirindo, a olhos vistos, centros universitários e empresas da área de saúde em nosso País. Estão aí os exemplos da fusão Kroton/Anhanguera e a compra da Amil, operações bilionárias, que vêm sendo tratadas como um grande êxito pelas autoridades governamentais. Um verdadeiro absurdo, que vai contra a legislação, contra os princípios mais elementares da ética e contra os interesses nacionais.

A bola da vez é o Grupo Intermédica, que está sendo negociado pelo valor de R$ 2 bilhões. O que mais chama a atenção do observador incauto é que, nesse caso específico, o comprador não é nenhuma empresa ou holding estrangeira com experiência de atuação na área da saúde ou da medicina. A aquisição está sendo implementada pelo conglomerado norte-americano Bain Capital, um fundo de investimentos com atuação nos mais variados ramos e setores da economia pelo mundo afora. Em sua página da internet, a instituição se vangloria de ser a gestora de ativos com valores superiores a US$ 70 bilhões, espalhados pela América do Norte, Europa e Ásia. Que beleza! Agora vão poder acrescentar a porção meridional do continente americano em seu portfolio.

Grupo de saúde como mero ativo financeiro

A Bain Capital é responsável pela gestão de empresas em um amplo espectro de setores. Seus ativos estão em ramos como telecomunicações, auto-peças, redes de fast-food, supermercados, brinquedos, suporte financeiro e, como não poderia deixar de ser, administra também alguma coisa na área da saúde. Alguém aí gostaria de fazer uma aposta a respeito de qual seria a verdadeira intenção por trás dessa compra? A aquisição da Intermédica refletiria apenas a busca de assegurar a rentabilidade aos seus acionistas e financistas no mercado internacional ou uma profunda, repentina e sincera preocupação com a qualidade da saúde oferecida ao povo brasileiro?

Afinal, o que teria levado um fundo de investimentos norte-americano a decidir pela aquisição bilionária no setor da saúde no Brasil? Com toda a certeza, não foram razões de ordem filantrópica que provocaram tal movimento de compra. A única explicação plausível é a expectativa de que tal operação renderá retornos financeiros expressivos aos acionistas da Bain Capital. E isso se obtém por meio da chamada maximização dos resultados da empresa. Em bom português: elevar ao extremo as receitas, reduzindo ao mínimo as despesas. Cada um de vocês já pode imaginar como essa estratégia irá se refletir no cotidiano da Intermédica, sob nova direção. Caso a aquisição não apresente os resultados esperados, a sede em New York anuncia a saída e coloca o negócio à venda novamente. Mas e a rede de clientes? Ora, esse tipo de pequeno detalhe deve estar previsto em algum dos incisos do contrato e a equipe de advogados é bem remunerada para livrar o grupo desse tipo de pepino.

Pouco importa que a Intermédica conte com mais de 40 anos de atuação no mercado saúde, atendendo mais de 3.500.000 associados e mais de 5.000 empresas. Além disso, é pouco relevante que a empresa apresente um quadro de pessoal com mais de 7300 funcionários. Esses são aspectos que certamente serão levados em conta no momento em que os novos proprietários apresentarem seu plano de negócios para os próximos anos.

Finalmente, caberá ao CADE e à ANS darem a palavra final autorizando ou não a venda. A Intermédica conta também um conjunto próprio de hospitais e maternidades. A Constituição Federal determina, em seu artigo 199, a proibição de empresas estrangeiras atuarem na saúde, “salvo nos casos previstos em lei”. Pois bem, em 1998, tal aspecto foi regulamentado pela Lei nº 9.656 e não foi previsto nenhum dispositivo autorizando a operação de hospitais. Mas como a ANS já fez vistas grossas desse empecilho na venda da Amil ao United Health, é bem provável que surja algum novo parecer jurídico encomendado e favorável a um novo desrespeito flagrante, sugerindo que “a lei, ora a lei...”.

 
(*) Economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.

(Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Continua-a-internacionalizacao-da-saude/30646)

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