Do Terra Magazine
Marcelo Semer
A barbárie chega aos poucos.
Ela se instala quase sempre sem alarde.
Na maior parte das
vezes, por trás de motivos ditos imperiosos, circunstâncias
extraordinárias e outras coisas pretensamente terríveis com que nos
convencem a abrir mão de direitos.
Ela cresce sob a
batuta do medo e a suposta necessidade de reagir, gerando ainda mais
medo, naquele círculo vicioso de uma profecia que se autorealiza.
As pessoas vão se
acostumando a romper os limites do que pensam e falam e como se tratam.
Jornalistas e políticos abrem mão de seus protocolos e de seus
princípios. Juristas acomodam e flexibilizam os conceitos do direito. E a
histeria vai comendo a todos pelas bordas.
Quando a gente se
dá conta, está matando uma mulher à pancada em plena rua, porque alguém
disse que quem sabe teria sido suspeita de um crime que ninguém nunca
viu.
Já faz tempo que
vimos nos seduzindo por um discurso irresponsável e sensacionalista que
prega, a partir do eterno mito da impunidade, a necessidade de mais
polícia, mais pena, mais prisão, mais tortura, mais mortes.
A lógica do estado
policial vai se instaurando como um vírus dentro do corpo social, porque
interessa a muitos que combatem, às vezes abertamente, outras de forma
sub-reptícia, a preservação do estado social.
Afinal, direitos são mais caros do que penas. E emancipam, não encarceram.
As soluções de
todos os problemas passam, então, pela dinâmica criminal. Tudo é
criminalizado e criminalização é cadeia e cadeia é, sobretudo, dor,
sofrimento e morte.
E quando o direito
penal não funciona, a culpa não é atribuído ao excesso, mas à escassez,
resolvendo-se, então, em mais crimes, mais penas, mais prisões, mais
torturas.
E o reclamo de que o estado é ineficiente, leniente, frouxo e que as pessoas tem “legítima defesa” para agir contra criminosos.
Quando a gente se
dá conta, está matando uma mulher à pancada em plena rua, porque alguém
disse que quem sabe teria sido suspeita de um crime que ninguém nunca
viu.
Pouco importa se a cultura do bandido bom, bandido morto resulta
em uma contradição inconciliável –porque matar é um crime mais grave do
que a maioria dos crimes atribuídos a esses "bandidos" que são mortos.
O importante é
aumentar o tônus criminal, porque isso dá audiência, isso dá votos, isso
dá ordem e disciplina, isso confirma uma linha imaginária (e,
sobretudo, racista) que separa os bandidos dos homens de bem –criminosos em muitas outras órbitas, mas homens de bem assim mesmo.
E na toada vamos
concordando com o aumento de penas, com o encarceramento desmedido, com o
senso comum de que a impunidade cresce, paradoxalmente com o inchaço da
população carcerária, e que, enfim, é preciso aceitar medidas drásticas
para situações excepcionais.
E passamos a tratar
criminosos como inimigos, manifestantes como terroristas, favelados
como subumanos, e vamos admitindo as violências policiais, os estados de
sítio implicitamente decretados nas decisões judiciais, e compreendendo
a revolta de quem se vê, ou apenas se sente, vítima da criminalidade.
Aí a gente
criminaliza a defesa, porque só atrapalha, culpa o habeas-corpus porque
atrasa a justiça, responsabiliza os próprios presos pelas violências que
sofrem, e admite prender garotos no poste, quando são flagrados no
crime, porque, afinal de contas, nada funciona mesmo.
E quando a gente se
dá conta, está matando uma mulher à pancada em plena rua, porque alguém
disse que quem sabe teria sido suspeita de um crime que ninguém nunca
viu.
Fonte: http://jornalggn.com.br/noticia/marcelo-semer-a-barbarie-chega-aos-poucos
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