Jornalista judeu analisa: no fundo, Israel não deseja paz. Por
isso, ocupa territórios, segrega e alimenta fundamentalismo religioso
baseado no desprezo ao outro
Por Gideon Lewy | Tradução: Inês Castilho
Israel não deseja a paz. Nunca quis tanto que estivesse errado o que
escrevo. Mas as evidências se acumulam. Na verdade, pode-se dizer que
Israel nunca desejou a paz – uma paz justa, ou seja, baseada num acordo
justo para ambos os lados. É verdade que a saudação rotineira em hebreu é
Shalom (paz) – shalom quando alguém se despede e shalom
quando alguém chega. E quase todo israelense dirá sempre que deseja a
paz, claro que sim. Mas ele não se refere ao tipo de paz que traz
justiça, sem a qual não há paz e não haverá paz. Os israelenses desejam
paz, não justiça; certamente nada que se baseie em valores universais.
Nos últimos dez anos, aliás Israel afastou-se até mesmo da aspiração de
construir a paz. Desistiu completamente dela. A paz desapareceu da
agenda, seu lugar foi tomado por ansiedades coletivas, fabricadas
sistematicamente, e por questões pessoais, privadas, que agora têm
prioridade sobre todas as outras.
Os israelenses que ansiavam pela paz aparentemente morreram há cerca
de uma década, depois do fracasso da reunião de Camp David em 2000, da
disseminação da mentira de que não há um parceiro palestino para a paz
e, claro, do terrível período da segunda intifada, encharcado de sangue.
Mas a verdade é que, mesmo antes disso, Israel nunca desejou realmente a
paz. Nunca, nem por um minuto, Israel tratou os palestinos como seres
humanos com direitos iguais. Nunca viu seu sofrimento como um sofrimento
humano e nacional compreensíveis.
Também o movimento israelense pela paz – se é que chegou a existir –
morreu uma morte lenta, em meio às penosas cenas da segunda intifada e à
mentira da falta de parceiros. Tudo o que restou foi um punhado de
organizações tão empenhadas quanto ineficazes, face às campanhas de
deslegitimação montadas contra elas. Logo, Israel foi deixada em sua
postura isolacionista.
A evidência mais esmagadora da rejeição da paz por Israel é,
claro, o projeto das colônias de ocupação da Palestina. Desde o início
de sua existência, nunca houve um teste mais seguro ou mais preciso para
as verdadeiras intenções de Israel do que esse empreendimento
particular. Em linguagem clara: os construtores das colônias desejam
consolidar a ocupação, e quem deseja consolidar a ocupação não deseja a
paz. Esse é o resumo da ópera.
Considerando que as decisões de Israel são racionais, é impossível
aceitar que a construção nos territórios e a aspiração pela paz possam
coexistir mutuamente. Cada ato de construção em colônias de ocupação,
cada casa móvel e cada varanda transmitem rejeição. Se Israel quisesse
alcançar a paz através dos Acordos de Oslo,
teria ao menos parado, por iniciativa própria, de construir as
colônias. O fato de que isso não aconteceu prova que Oslo foi uma
fraude, ou, na melhor das hipóteses, a crônica de um fracasso anunciado.
Se Israel desejava construir a paz em Taba, em Camp David, em Sharm
el-Sheikh, em Washington ou em Jerusalém, seu primeiro passo teria sido
acabar com toda ocupação nos territórios. Incondicionalmente. Sem exigir
nada em troca. O fato de Israel não tê-lo feito é a prova de que não
quer uma paz justa.
Mas as colônias são apenas um dos indicadores das intenções de
Israel. Seu isolamento está entranhado bem mais fundo – em seu DNA, sua
corrente sanguínea, suas crenças mais primordiais. Lá, no nível mais
profundo, está o conceito de que esta terra está destinada apenas aos
judeus. Lá, no nível mais profundo, está entrincheirado o valor de “am
sgula” — os escolhidos por Deus.
Na prática, isso se traduz na noção de que, nesta terra, os judeus
estão autorizados a fazer o que aos outros é proibido. Esse é o ponto de
partida, e não há como chegar a uma paz justa a partir daí. Não há
nenhuma maneira de alcançar uma paz justa quando o nome do jogo é
desumanização dos palestinos. Não há forma de conseguir alcançar a paz
quando sua demonização é martelada na cabeça das pessoas dia após dia.
Quem está convencido de que cada palestino é um suspeito e quer “jogar
os judeus no mar” nunca vai construir a paz com os palestinos. A maioria
dos israelenses estão convencidos de ambas as afirmações.
Na década passada, as duas populações foram separadas uma da outra. O
jovem israelense médio nunca se encontrará com seu par palestino, a não
ser durante seu serviço militar (e, mesmo assim, apenas se servir nos
territórios ocupados). Nem o jovem palestino médio encontrará um
israelense da sua idade, a não ser o soldado que o hostiliza no checkpoint, ou invade sua casa no meio da noite, ou o colono que usurpa sua terra ou queima seus bosques.
Em consequência, o único encontro entre os dois povos é entre os
ocupantes, que são armados e violentos, e os ocupados, que são
desesperados e também se voltam para a violência. Foram-se os tempos em
que palestinos trabalhavam em Israel e israelenses iam fazer compras na
Palestina. Foi-se o período de relações meio-normais e um-quarto-iguais,
que existiram por poucas décadas entre dois povos que dividiam o mesmo
pedaço de território. É muito fácil, nesse estado de coisas, incitar e
inflamar um contra o outro, espalhar medos e instigar novos ódios sobre
os já existentes. Essa é, também, uma receita certa de não-paz.
Foi assim que um novo anseio israelense surgiu: o desejo de
separação: “Eles ficam lá e nós ficamos aqui (e lá também)”. Num momento
em que a maioria dos palestinos – avaliação que me permito fazer, após
décadas de cobertura nos territórios – ainda quer coexistência, mesmo
que cada vez menos, a maioria dos israelenses quer não-envolvimento e
separação, mas sem pagar o preço. A visão de dois estados ganhou adesão
generalizada, mas sem qualquer intenção de implementá-la na prática. A
maioria dos israelenses é a favor, mas não agora e talvez nem mesmo
aqui. Eles foram treinados a acreditar que não há parceiro para a paz –
isto é, um parceiro palestino – mas há um parceiro israelense.
Infelizmente, a verdade é quase o oposto. Os palestinos não-parceiros
não têm mais nenhuma chance de provar que são parceiros; os
não-parceiros israelenses estão convencidos de que são interlocutores.
Começou então um processo em que as condições, obstáculos e dificuldades
impostas por Telaviv se amontoaram, mais um marco no isolamento
israelense. Primeiro, veio a exigência de acabar com o terrorismo; em
seguida, a demanda pela troca da liderança (Yasser Arafat visto como uma
pedra no caminho); e depois disso o Hamas tornou-se o obstáculo. Agora é
a recusa dos palestinos em reconhecer Israel como um Estado judeu.
Israel considera legítimo cada passo que dá – de prisões políticas em
massa à construção nos territórios –, enquanto todo movimento palestino é
considerado “unilateral”.
O único país sem fronteiras do planeta não quis, até aqui, delimitar
sequer as fronteiras que estaria pronto a aceitar num acordo. Israel não
internalizou o fato de que, para os palestinos, as fronteiras de 1967
são a mãe de todos os acordos, a linha vermelha da justiça (ou justiça
relativa). Para os israelenses, elas são “fronteiras suicidas”. Essa é a
razão pela qual a preservação do status quo tornou-se o
verdadeiro alvo, o objetivo primordial da política de Israel, quase seu
tudo ou nada. O problema é que a situação existente não pode durar para
sempre. Historicamente, poucas nações aceitaram viver sob ocupação sem
resistência. E também a comunidade internacional estará apta, um dia, a
proferir um pronunciamento firme, acompanhado de medidas punitivas,
sobre este estado de coisas. Segue-se que o objetivo de Israel é
irrealista.
Desconectada da realidade, a maioria dos israelenses mantém seu
estilo de vida normal. A seus olhos, o mundo está sempre contra eles, e
as áreas de ocupação à sua porta estão fora de sua esfera de interesse.
Quem ousa criticar a política de ocupação é rotulado de anti-semita,
cada ato de resistência é percebido como uma ameaça existencial. Toda a
oposição internacional à ocupação é lida como “deslegitimização” de
Israel e como um desafio para a própria existência do país. Os sete
bilhões de pessoas do mundo – a maioria das quais contra a ocupação –
estão erradas, e seis milhões de judeus israelenses – a maioria dos
quais apóia a ocupação – estão certos. Essa é a realidade na visão do israelense médio.
Some a isso a repressão, a ocultação e a dissimulação, e você tem uma
outra justificativa para o isolamento. Por que alguém deveria lutar
pela paz, desde que a vida em Israel seja boa, a calma prevaleça e a
realidade se mantenha oculta? A única maneira de a Faixa de Gaza,
sitiada, lembrar as pessoas de sua existência é atirando foguetes, e,
atualmente, a Cisjordânia só entra na agenda quando há sangue derramado
por lá. Da mesma forma, o ponto de vista da comunidade internacional só é
levado em conta quando tenta impor boicotes e sanções, que por sua vez
geram imediatamente campanhas de autovitimização cravejadas de
contundentes – e, às vezes, também impertinentes – acusações históricas.
Este é, pois, o quadro sombrio. Não contém um raio de esperança. A
mudança não vai acontecer por si mesma, a partir do interior da
sociedade israelense, caso continue a se comportar como se comporta. Os
palestinos cometeram mais do que um erro, mas seus erros são marginais. A
justiça de base está do seu lado, e o isolamento de base é o limite dos
israelenses. Eles querem ocupação, não paz.
Tenho a esperança de estar errado.
(fonte: http://outraspalavras.net/capa/telaviv-assim-se-fabrica-a-guerra-infinita/)
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