segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O massacre visto por dentro


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Dois médicos noruegueses em Gaza descrevem, atônitos, guerra que visa especialmente residências e hospitais e faz população acreditar que já “não há nada a perder”

Por  Gideon Levy e Alex Levac, no Haaretz | Tradução: Cauê Ameni e Gabriela Leite
Os números são escritos em tinta na palma de sua mão, como se fosse uma um aluno anotando uma cola para uma prova: 1.035 mortos, 6.233 feridos, em duas horas na segunda-feira. A cada dia, ele apaga as cifras e atualiza.
Nesta semana, o professor Mads Gilbert deixou o Hospital de Shifa, na Faixa de Gaza, para breve férias em sua terra natal, Noruega, depois de duas semanas consecutivas tratando as vítimas da guerra. Seu colega e compratriota, o professor Erik Fosse, deveria substituir Gilbert em Gaza, mas até o meio da semana Israel ainda o impedia. Fosse passou, também, a primeira semana da Operação Borda de Proteção em Shifa, e queria voltar.
Gilbert e Fosse trabalharam em Shifa durante a Operação Chumbo Fundido, em 2008-09, e publicaram na sequência o livro Olhos em Gaza, um best-seller internacional. Agora, eles afirmam que, em termos de dano causado à população civil, e principalmente às crianças, a atual guerra na Faixa de Gaza é ainda mais angustiante do que a anterior.
Ambos estão em seus sessenta anos. Eram admiradores de Israel em sua juventude, mas na primeira guerra do Líbano em 1982 – em que se alistaram para ajudar a tratar os palestinos feridos – suas perspectivas e vidas mudaram para sempre. “Foi então que vi a máquina de guerra israelense pela primeira vez”, Gilbert lembra.
Fosse dirige uma organização chamda NORWAC (Comitê da Ajuda Norueguesa), que presta assistência médica aos palestinos, e é financiada pelo governo norueguês. Gilbert (que é voluntário independente) e Fosse têm, ambos, dedicado boa parte de suas vidas ajudando os palestinos, o que tornou Gaza uma segunda casa para eles. Na segunda-feira à tarde, encontramos Fosse, um cirurgião cardíaco, em Herzlia, retornando para Gaza, depois de suas férias na Noruega. E conhecemos Gilbert, um anestesista, enquanto saía da passagem da fronteira de Erez a caminho de casa. As imagens descritas pelos dois deve pesar muito na consciência de cada ser humano decente.

“Pensei que a a Operação Chumbo Fundido seria a experiência mais terrível da minha vida”, disse Gilbert, “até que cheguei em Gaza há duas semanas. Era ainda mais chocante. Os dados revelam que há 4,2 vítimas palestinas por hora… Mais de um quarto dos mortos são crianças; mais da metade são mulheres e crianças. As forças armadas de Israel admitem que 70% são civis; a ONU diz que 80% são; mas pelo que vi no Shifa, mais de 90% são civis. Isso significa que estamos falando de um massacre da população civil”.
“Shujaiyeh foi um verdadeiro massacre”, continua ele. “Na Operação Chumbo Fundido, eu não vi esse tipo de ataque em edifícios residenciais; naquela época, os prédios públicos foram atacados. A brutalidade, o dano intencional a civis e a destruição são mais angustiantes agora do que na Operação Chumbo Fundido. Não me impressiona o o fato de que as pessoas recebam um aviso de 80 segundos para evacuar suas casa. Isso é desumano. A visão de Shujaiyeh é mais terrível do que qualquer coisa que vimos em Chumbo Fundido”.
“Dê uma olhada em Shujaiyeh – parece Hiroshima. Eu nunca vou me acostumar com a visão de uma criança ferida, quando não temos à disposição meios adequados para tratar deles. Usamos anestesia local, devido à falta de remédios, e não há drogas suficientes nem para isso”.
Gilbert, que leciona na Universidade do Norte da Noruega, também está furioso com o que vê como dano intencional do exército aos hospitais. Nada sobrou do hospital de reabilitação Al-Wafa; o hospital infantil Mohammed al-Dura em Beit Hanun foi bombardeado pelo exército, e uma criança de dois anos e meio, internada na UTI, foi morta. Quatro pessoas morreram no Hospital Al-Aqsa. Gilbert tinha visitado o hospital infantil e testemunhou a cena com seus próprio olhos. Nove ambulâncias foram atacadas; os médicos foram mortos e feridos. Na opinião de Gilbert, estes incidentes constituem crimes de guerra.
O médico ficou particularmente impressionado pela determinação e comportamento dos residentes, primeiramente aqueles das equipes médicas locais. Em Shipa, nenhum dos funcionários recebeu salário por três mêses; nos oito meses anteriores, apenas receberam metade dele. Mesmo os que tiveram suas casas destruídas permaneceram trabalhando. Sua devoção à profissão sob tais condições deixaram-no atônito.
No que diz respeito à afirmação de que os líderes de Hamas estão escondidos em Shifa, os dois noruegueses dizem não terem visto um único homem armado ou qualquer chefe da organização; alguns ministro do Hamas foram visitar os feridos.
Gilbert diz que, também na Operação Chumbo Fundido, o exército de Israel tentou assustar o serviço médico dizendo que os militantes armados estavam escondidos no hospital. Mas a última pessoa com armas que os noruegueses viram em Shifa foi um médico israelense, durante a primeira intifada, anos atrás. Gilbert diz que avisou o homem sobre a lei internacional, que proíbe levar armas a hospitais.
Da mesma maneira, ele recusa as declarações de que o Hamas está usando a população civil de Gaza como escudo humano, e adiciona: “Onde a resistência clandestina ao nazismo se escondia, na Holanda e na França? E onde escondia suas armas?”
“Eu não apoio o Hamas”, diz Gilbert. “Eu apoio palestinos, e também seu direito de escolher os líderes errados. E quem escolheu [o primeiro-ministro israelense] Neanyahu e [o ministro de Relações Exeteriores, de extrema-direita,] Lieberman? Eles [os palestinos] têm o direito de cometer erros. Visito Gaza há 17 anos. Quanto mais você a bombeia, mais o apoio pela resistência cresce. Sinto que a tentativa de retratar Hamas como um Boko Haram é ridícula. Boko Haram é o exército de Israel, que está violando a lei internacional. Como seus comandantes podem estar orgulhosos de matar civis?
“A História vai julgá-los e acredito que o exército de Israel não vai sair disso bem, dados os fatos. Eu faço um chamado aos israelenes: ergam-se. Mostrem coragem. Israel etá se movendo na direção de ser pior que a África do Sul — e isso seria uma forma vergonhosa de deixar o palco da história.”
Fosse é mais comedido, provavelmente porque trabalhou apenas até a invasão por terra em Gaza começar. Em Shifa, ele conduziu cerca de dez operações por dia. Elogia a especialidade dos médicos de Gaza, com quem trabalhou.
Ele vê sua missão como uma extensão para além da sala de cirurgia, ao levantar um grito de alarme para o mundo, depois de Gaza ser esvaziada de qualquer presença internacional por Israel. Ele afirma que a maioria dos feridos que tratou foram atingidos por mísseis guiados de precisão. Está certo, portanto, de que o maior número de ataques a civis e crianças foi intencional.
Em seu livro, os noruegueses reproduziram uma foto dos atiradores do exército de Israel, vestindo camisetas com as legendas: “Menores — mais duros” e “Uma bala — dois mortos”. Desta vez, são os mísseis inteligentes que estão matando crianças. Mas na opinião de Fosse, o cerco de Israel a Gaza é ainda mais sério para seus residentes que a guerra. E é esse o motivo de o Hamas estar mais agressivo agora.
“Há sete anos, a sociedade inteira está se desmoronando. Não há comércio, não há exportação nem saída. A única ocupação que permite acumular dinheiro é o contrabando, e isso destrói a sociedade. Destrói Gaza como uma sociedade normal. O cerco criou um reduzido grupo de pessoas que enriquecem contrabandeando. Todas as outras são pobres. Isso mina a estrutura da sociedade, e é o maior problema de Gaza.
“Fui lembrado de minhas conversas com cirurgiões palestinos da minha idade. Por anos, eles viveram em uma Gaza aberta, que tinha conexões excelentes com os médicos israelenses. Sempre sonharam em voltar a isso. Agora, esses mesmos médicos se reúnem em volta da televisão e ficam felizes quando foguetes caem no país vizinho. Eu digo a eles: mas Israel vai reagir. E eles dizem: não nos importamos mais. Vamos morrer de qualquer maneira. É melhor morrer em um bombardeio.
“Eles perderam toda a esperança. É chocante ver estas pessoas perdendo seus filhos e não se importarem mais. Israel está perdendo soldados, agora, para preservar uma situação a que o mundo inteiro se opõe. Isso é um crime contra uma população civil imensa”, Fosse acrescenta.
“Vocês roubaram seu futuro e eles estão em desespero. O Hamas não tem muito apoio, mas há um imenso apoio ao sentimento de que não há mais nada a perder. E, do outro lado, está a sociedade israelense, que não se importa. É muito triste. Vocês, que passaram pelo Holocausto, tornaram-se racistas. Em minha opinião, isso é uma tragédia. Por que estão fazendo isso? Estão ultrapassando todos os limite éticos — e, no fim, isso também vai destruir sua própria sociedade.”

* Gideon Levy é um colunista e membro do conselho editorial do jornal Haaretz, de Israel. Ele é o autor da coluna semanal Twilight Zone, que tem cobrido a ocupação israelense na Cisjordânia e em Gaza nos últimos 25 anos, e também escreve editoriais políticos para o jornal. Levy foi o ganhador do Prêmio de Euro-Med de Jornalismo em 2008; o Prêmio Leipzig de Liberdade em 2001; o Prêmio da União de Jornalistas de Israel; e o Prêmio da Associação de Direitos Humanos em Israel em 1996.

(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/o-massacre-visto-por-dentro/)

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