por Urariano Mota
No último domingo, enquanto assistia à missa no velório de Eduardo Campos, anotei em uma folha dobrada:
Lula é o cara. Quebrou as vaias, as lanças e
hostilidade que se levantaram contra Dilma. Lula pegou Miguelzinho, o
bebê órfão, dos braços de Renata. E fala com ela, a ela. Atrás dele,
Serra faz uma cara de quem mastiga o insuportável. A cara de Serra,
atrás de Lula, me lembrou uma lição da cartilha do ABC na infância:
“Paulinho mastigou pimenta...”. Luiz Carlos Azenha me falaria depois,
quando o encontrei por acaso em meio à Ponte Buarque de Macedo: “a Globo
News mostrou somente a cara de Serra”.
Mas a cara no velório foi outra. Lula roubou a cena
das mãos da selvageria, da claque formada que investiu contra Dima.
Acima do pós-doutorado em política e relações humanas, esse homem do
interior de Pernambuco tem a dignidade dos que se defendem com o povo.
Sem pompa, é autoridade pelo que de brasileiro deserdado ele possui.
Quando encontrei Azenha na ponte, nem lembrei dos versos de Augusto dos
Anjosi, no poema As Cismas do Destino, que recupero agora:
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!”
Medo sentimos pela onda de conservadorismo que se
levanta. Quando o arcebispo de Olinda e Recife rezou na missa em frente
ao palácio do governo a frase: “Aceita, Senhor, o nossa sacrifício”, uma
jovem devota a meu lado, enquanto comia um potinho de doce de banana,
repetia com ele: “Senhor, aceita o nosso sacrifício”. E comia. Faz mal à
gente o mundanismo reles, naquele instante e lugar. O que meu íntimo
censurava, notei depois, foi o comportamento vulgar da ausência absoluta
de respeito aos mortos. A jovem que comia docinho repetia a visão do
palco da missa, quero dizer, do púlpito, quero dizer, das autoridades e
alguns íntimos do falecido adiante. Ela traduzia o grande mundo à altura
das suas posses A liturgia da morte foi quebrada, dentro e fora do
cercado em frente ao Palácio do Campo das Princesas.
Na missa, o arcebispo Dom FernandoSaburido falava em ressurreição.
“Como disse o apóstolo Paulo, na segunda leitura:
como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão.... E o
mais bonito, meus irmãos e irmãs, é que todos os que creem em Jesus
reviverão, não somente depois da morte, mas desde o instante em que
acreditamos na sua Palavra”. Na Praça da República, no Recife, o que se
interpretava de tais palavras era mais carnal. De fato, no contexto
armado do show cujo mote era uma tragédia, entre os telões com os atores
políticos e pessoas com bandeiras eleitorais, do PSB e de Marina Silva a
ressurreição falava mais perto à terra. E aqui, nem vamos lembrar,
porque herético, demolidor, o sentido que deu à palavra o romance
Ressureição, de Tolstói. Porque o significado era mais simples e baixo,
nas condições do show eleitoral criado em torno da missa: a ressurreição
era para Marina Silva.
Por isso o encontro com Luiz Carlos Azenha, na ponte
Buarque de Macedo, foi mais respeitoso e aberto, quando lhe disse: “A
gente fala no diabo e você aparece”, Ao que ele me respondeu: “E eu sou
filho do capeta”. É muito bom encontrar pessoas, repórteres honestos,
corajosos, à margem da bênção eleitoral. Então lhe falei que Lula roubou
a cena, inverteu o sentido das vaias com o gesto de agasalhar em seus
braços o bebê Miguel. Menos para as imagens na televisão, onde apareceu a
brilhante calvície de Serra. E lhe falei que me preocupava a pregação
das qualidade de Eduardo Campos em que avulta o amor à família cristã.
Para mim, para mais de 90% dos brasileiros que não nos formamos em
famílias sólidas, de avós, pai, mãe e filhinhos harmonizados, isso é o
mesmo que um escárnio. Suavizado, é claro, pela doce luz do evangelho.
Por que em lugar de uma pregação de valores humanos
que abriguem a realidade vivida pela maioria dos brasileiros, por que se
faz uma construção piegas, e falsa, por extensão? Será mesmo assim tão
importante ser família no sentido mais burguês da palavra, não ter
falhas, somente filhos, amar o lar doce lar, último reduto contra a
tempestade do mundo? Então somos obrigados a ver Jarbas Vasconcelos
elogiar o respeito à família em Eduardo, ao mesmo tempo que nem devemos
lembrar a última “namorada” de Jarbas ser capa da Playboy. Faz parte da
hipocrisia eleitoral, que em vez da homenagem que o vício paga à
virtude, é substância mais grosseira: a destruição da lembrança da orgia
da última noite.
Pensando melhor, o que vimos nesse último domingo foi
tudo, menos um velório. Chamem-no de evento, espetáculo, oportunismo,
desrespeito aos mortos, insensibilidade à tragédia, surfismo eleitoral.
“Nós temos família e sabemos o quanto é importante uma família feliz.
Ontem, por coincidência, foi o encerramento da Semana Nacional da
Família, cujo tema para reflexão neste ano de 2014 foi A espiritualidade
cristã na família: um casamento que dá certo. Ou seja, tudo a ver com a
família que Eduardo e Renata procuraram constituir e que viveram na
alegria e na tristeza, na saúde e na doença, e que agora continua tão
firme e estável como antes, na saudade e no amor que não morre”, assim
falou o arcebispo Dom Saburido. .
Prefiro os versos de Augusto dos Anjos, ao subir a ponte Buarque de Macedo:
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!”
Depois do último domingo, sabemos que a mulher de luto é Marina Silva. Há um tom profético em toda poesia.
(fonte: http://www.viomundo.com.br/politica/urariano-mota-o-que-vimos-ultimo-domingo-foi-tudo-menos-velorio.html)
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