por Mauricio Tuffani
Enquanto
a Amazônia brasileira chama a atenção do mundo, com seu corte raso já tendo
atingido cerca de 19% da floresta original, grande parte da população de
nosso país ignora ou nada faz para acabar com seu próprio prejuízo pela
devastação da mata Atlântica, que já alcança mais de 87% de seu domínio desde o
Descobrimento do Brasil e é um dos principais fatores da crise hídrica e
energética que prejudica a região Sudeste.
O desmatamento
da Amazônia alcançou uma área equivalente à metade do Estado do Amazonas.
Metade desse estrago aconteceu nos últimos 25 anos. O ritmo dessa
devastação teve uma significativa redução desde 2006, mas antes que restem
menos de 80% da floresta na região é urgente diminuir ainda mais as taxas
anuais de desmatamento.
No
outro lado do país, na mata Atlântica, as proporções se invertem. Da grande
floresta tropical que se estendia por 131 milhões de hectares do Rio Grande do
Sul ao Piauí e do litoral ao Centro-Oeste, restam hoje apenas cerca
de 16,5 milhões de hectares, ou seja, pouco mais de 12%. Se não cuidarmos
desses remanescentes e não recuperarmos grande parte do que foi desmatado,
nunca conseguiremos nos livrar da crise hídrica.
Conservar e recuperar
No
final do século 20, quando a conservação da biodiversidade já era considerada
importante, a Conservation International e outras entidades tentaram
chamar a atenção para o fato de que a mata Atlântica e o Cerrado eram
hotspots, ou seja, biomas de altíssima diversidade biológica, mas gravemente
ameaçados pela devastação.
Além
da necessidade de deter a devastação, como na Amazônia, na mata Atlântica
é cada vez mais urgente promover a recuperação de grande parte das áreas
degradada. Somente agora, com a crise hídrica e energética que assola a
região Sudeste, começou a se compreender essa urgência, especialmente para as
áreas das bacias hidrográficas, como a dos rios Piracicaba, Jundiaí e Capivari,
onde está o sistema Cantareira e outros que abastecem a região de maior
concentração populacional do Estado de
São Paulo.
Devastação prossegue
Apesar
disso, além de a recuperação de áreas degradadas de mata Atlântica ainda estar
engatinhando, o desmatamento segue em ritmo intenso em algumas cidades
de Estados como Piauí, Minas Gerais e Bahia, segundo o monitoramento
realizado desde 1986 pela Fundação SOS Mata Atlântica em parceria com o
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Duas
cidades do Piauí tiveram as “medalhas de ouro e de prata” no ranking das
maiores desmatadoras brasileiras da mata Atlântica, de 2012 a 2013. Manoel
Emídio foi a campeã, com 3.134 hectares, ou seja, 13% do total de 24,7 mil
hectares de desmatamento nesse biênio. Alvorada do Gurguéia, a segunda
colocada, teve 2.491 hectares devastados, o correspondente a 10% do total
desmatado no bioma no mesmo período.
O “Atlas dos Municípios da Mata Atlântica” aponta cinco
desses dez municípios em Minas Gerais, Estado que liderou o ranking nacional do
desmatamento por cinco anos consecutivos.
Cinco séculos
A
mata Atlântica foi o bioma mais devastado de nosso país por ter sido o
principal cenário da história do Brasil em seus primeiros séculos. Foi no
domínio original dessa floresta que se implantou o modelo predatório da
agricultura colonial. Adotado pelos colonizadores portugueses sem a menor
preocupação com a aplicação de conhecimentos de proteção dos solos, esse
modelo de agricultura deixou perplexos os imigrantes europeus que chegaram
a partir do final do século 19.
Essa
cultura baseada na relação inconsequente com o uso da terra, que já havia sido
dissecada por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu clássico “Raízes do Brasil”, de 1936, foi mais tarde retomada no
livro “A Ferro e Fogo: A história e a devastação da mata Atlântica brasileira”,
de Warren Dean (1932-1994). Nas palavras desse brazilianist,
“Durante quinhentos
anos, a Mata Atlântica propiciou lucros fáceis: papagaios, corantes, escravos,
ouro, ipecacuanha, orquídeas e madeira para o proveito de seus senhores
coloniais e, queimada e devastada, uma camada imensamente fértil de cinzas que
possibilitava uma agricultura passiva, imprudente e insustentável. A população
crescia cada vez mais, o capital ‘se acumulava’, enquanto as florestas
desapareciam.” (Companhia das Letras, 1996, pág. 380)
Alerta
Tive
o prazer de conhecer pessoalmente Dean em 1992, na biblioteca do Instituto
Florestal de São Paulo, quando ele ainda estava pesquisando para essa obra,
publicada postumamente em 1995. Influenciado não só pela magnitude da
devastação, mas também pela irracionalidade predatória de nossa
história e pela descrição de Sérgio Buarque de Holanda sobre nosso caráter
nacional, Dean era profundamente descrente da possibilidade de implantar
modelos sustentáveis de agricultura na mata Atlântica.
Sob
essa perspectiva pessimista, ele finalizou seu livro mostrando que nada mais
restava a essa floresta senão servir de alerta para a Amazônia:
“O
último serviço que a mata Atlântica pode prestar, de modo trágico e
desesperado, é demonstrar todas as terríveis consequências da destruição de seu
imenso vizinho do oeste.”
Crise hídrica
Na
verdade, Dean, que mal teve tempo para testemunhar projetos sustentáveis nessa
floresta, com essa frase de efeito subestimou suas próprias constatações sobre
a importância dos remanescentes da mata Atlântica para a integridade das bacias
hidrográficas.
Entre
outros estudiosos, uma das fontes do brazilianist, Paulo Nogueira Neto, secretário especial do Meio Ambiente do
governo federal de 1974 a 1986, já havia alertado para a
desastrosa obsolescência de nossos sistemas de abastecimento de água, programada
imprevidentemente pelos desmatamentos e pela falta de recuperação de
áreas degradadas.
Hoje a
crise hídrica e energética que assola a região Sudeste não nos deixa
alternativas que não incluam a salvação de nossos mananciais. Foi um dos pontos
que ressaltou há poucos dias a Academia Brasileira de Ciências ao
endossar um manifesto de 15 pesquisadores que alertaram para estiagens cada vez
mais extremas, devidas a “fortíssimos os indícios de que há uma mudança
climática em curso” (“Cientistas acusam muita discussão e pouca ação na crise hídrica”,
16.nov).
Mesmo
que venha a chover o necessário para evitar uma catástrofe, ainda que passemos
a usar água de modo consciente e por mais que os governos construam os sistemas
de abastecimento que já deveriam estar prontos, nunca mais teremos
segurança hídrica se não pararmos a devastação de nossa cobertura vegetal
nativa e se não recuperarmos grande parte das áreas florestais degradadas,
principalmente nas bacias hidrográficas.
Nunca
estaremos livres dessa crise, sem salvar a mata Atlântica.
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