sábado, 17 de janeiro de 2015

Apologia a Tancredo esconde seus desastres

Lembro como se fosse hoje, o dia do comício pelas Diretas em BH, na praça da Rodoviária. Fui lá à tarde, tirei umas fotos, mas os discursos estavam reservados para a noite. No entanto, haveria aulas na Fafi e lá fui eu. Os alunos não foram, estavam todos no comício, então voltamos para lá. Ao voltar pelo lado oposto à Avenida Afonso Pena, conseguimos ficar bem embaixo do enorme palco, ao lado de duas caixas de som monstruosamente grandes, que quase nos ensurdeciam.
Vimos desfilar várias personalidades e cantores. Depois que Milton Nascimento cantou, chamaram o Tancredo. Eu não consegui ouvir mais nada, apesar de meus ouvidos estarem junto às caixas de som, tal o tamanho e volume da vaia que ele recebeu, porque todo mundo sabia que ele era contrário às diretas, estava ali porque não tinha jeito de não estar.
Depois que ele morreu, aquela coisa maluca de pessoas desnorteadas derrubando grades do palácio, pisoteando, para ver o cadáver do "salvador da pátria". 
Vá entender o que o povo pensa!


Quem foi Tancredo Neves?
 
A apologia a Tancredo Neves (1910-1985), por ocasião dos 30 anos de sua eleição para a Presidência da República, doura a personagem e até mesmo a política da época, sem um mínimo de respeito à memória e à história do período.
 
Tancredo era um político hábil, uma das grandes raposas da política mineira. Foi um aguerrido ministro da Justiça no último governo de Getúlio Vargas, o mesmo Vargas que havia provocado a cassação de seu mandato de vereador, quando sobreveio o chamado Estado Novo, em 1937. 

Tancredo foi também um Primeiro-Ministro afinado com João Goulart em nossa breve experiência parlamentarista de 1961. 

Depois do golpe, foi um moderado da luta contra a ditadura, bem menos ousado do que o já moderadíssimo Ulysses Guimarães. 

Tancredo tem sido agora principalmente lembrado como o arquiteto da transição democrática, a partir daquela eleição para a Presidência, em janeiro de 1985.

Tancredo é autor da frase de que nosso progresso político deveu-se mais à força das reivindicações do povo do que à consciência das elites. As elites, que ele conhecia muito bem, sempre tiveram que ser empurradas, dizia ainda com alguns resquícios do varguismo.

Mas Tancredo também é conhecido pela frase de que "entre a Bíblia e O Capital [o livro clássico de Karl Marx], o PSD fica com o Diário Oficial”. 

A frase é dos tempos em que o político mineiro estava justamente no PSD, a grande máquina eleitoral dos anos 1946 a 1964, um partido que em muitas coisas lembra o PMDB de ontem, de hoje, de sempre. 

A expressão "Diário Oficial" pode ser traduzida pela "santíssima" trindade da política tradicional: cargos, verbas e a caneta para dizer "sim" ou "não".

A máxima tancrediana é uma defesa de que política é mais pragmatismo do que ideologia.

Assim pensava o Tancredo que muitos, talvez por esquecimento, consideram tão diferente da maioria dos políticos no Congresso.

O governo Sarney é obra de Tancredo

 Tancredo derrotou Maluf, mas trouxe consigo, para dentro do governo, políticos que tinham seu próprio jeito malufista de ser, a começar de seu vice-presidente, José Sarney, que tinha sido tão Arena (o partido governista da ditadura) e tão PDS (o sucessor da Arena) quanto o próprio Maluf.

José Sarney desembarcou do barco que afundava com o último presidente militar, o general João Figueiredo (1918-1999), e pulou nos braços do PMDB, onde está até hoje.
Sarney empossou o ministério montado por Tancredo, sem tirar nem pôr. 

O PMDB era o partido majoritário, sem rivais, tal sua força de atração e tal o sucesso conquistado na primeira fase do mandato, embalado pela popularidade do Plano Cruzado, que parecia, enganosamente, ter finalmente domado a inflação.

Um dos legados de Tancredo foi o silêncio sobre fatos da ditadura que só recentemente foram reconhecidos pelo Governo e pela Comissão da Verdade, ainda assim, preliminar e até timidamente.

A Aliança Democrática de Tancredo deu tão certo que foi responsável direta por limitar maiores avanços na Constituinte, como no tema da reforma agrária. 

PMDB e PFL rapidamente se reconciliaram com o PDS em um bloco apelidado de Centrão, que unificou a direita no Congresso e deu a tônica da segunda metade daquele governo.
A figura emblemática do Centrão foi o deputado paulista Roberto Cardoso Alves, que justificou suas barganhas políticas com o lema de que "é dando que se recebe", deturpando ironicamente o lema de S. Francisco de Assis. Ficara explícito quanto era velha a Nova República criada por Tancredo. 

Tancredo ajudou o PMDB a ser o que é

 Tancredo patrocinou o gigantismo do PMDB. Mesmo com sua morte, seu peso na trajetória do PMDB acabou sendo muito maior que o do próprio Ulysses Guimarães, graças ao modelo de governança e de governabilidade tocado pelo governo Sarney. 

Não foi por outra razão que, em 1989, o próprio Ulysses foi derrotado pelo peemedebismo. Seu partido o abandonou em plena campanha presidencial para apoiar o candidato favorito, Fernando Collor. De novo, a preocupação maior era o Diário Oficial.

O PMDB tornou-se, desde Tancredo, um fator de estabilidade e de grande instabilidade da política nacional pós-ditadura. 

É um partido com o qual todos os presidentes querem contar, pelo tamanho de sua base congressual, mas é o grande responsável por transformar o chamado presidencialismo de coalizão em uma zorra.

O PMDB tem uma fome insaciável por cargos, verbas e canetas - não que seja o único com tal característica na política nacional, mas o tamanho do estômago do PMDB, expandido pelo fato de que tem mais alas do que uma escola de samba - cada qual com sua própria cadência e atravessando o ritmo -, faz toda a diferença em relação a outros partidos.

O centro de gravidade do sistema político brasileiro gira tanto em torno do PMDB que o filósofo Marcos Nobre ("Imobilismo em movimento: da abertura política ao governo Dilma". São Paulo: Companhia das Letras, 2013) defende a tese de que todos os partidos acabam sendo atraídos por seu modo de fazer política, o que Nobre chama de peemedebismo.

O PMDB é um balaio de grupos estaduais eternamente descontentes, a maioria deles adepta do velho provérbio de que "quem não chora, não mama". As exceções ficam por conta do senador Roberto Requião e outra meia dúzia, no máximo.

O PMDB é uma coisa no Pará, outra no Paraná. É uma coisa na Câmara, outra no Senado. É um partido que age de uma maneira, quando liderado por Michel Temer e Sarney, e de outra quando comandado por Eduardo Cunha e Renan Calheiros. 

Não é sempre o mesmo PMDB, pois a política o obriga a mudar, mas não dá para dizer que ele já foi melhor, salvo se enveredarmos na mitologia.

A velha luta da memória contra o esquecimento

Todo e qualquer presidente contribui, de uma maneira ou de outra, com êxitos e desastres maiores ou menores - dependendo das circunstâncias históricas e de como reage a elas.

Pela maioria dos relatos comemorativos da eleição de 15 de janeiro de 1985, até parece que a única coisa que deu errado com Tancredo e sua transição democrática foi sua morte.

Na narrativa que conta a jornada dos anos dourados à decadência completa, a malandragem é esculhambar o presente sem contar metade da missa, como se tivéssemos vindo de um mar de rosas e, no meio do caminho, alguém houvesse tropeçado - justo quando Tancredo já não estava mais lá para "ajudar". 

Além de ter sido o protagonista da vitória no Colégio Eleitoral, Tancredo não pode ser dissociado do que foi o governo Sarney e do que ocorreu com o PMDB.

A raposa mineira traçou os rumos da transição democrática, montou o governo Sarney e armou o jogo que fez o PMDB ser o que é.

Se o presidente morto merece respeito, a memória e a história também. 

Enaltecer Tancredo não pode ser um pretexto para distorcer a memória dos fatos e fazer com que todos se esqueçam, como num passe de mágica, de onde viemos, onde estamos e dos monstrengos que estão à frente do povo brasileiro fazendo da política, muitas vezes, um obstáculo, e não em uma via de transformação social e econômica do país.

As gerações que não viveram aquela época, mas que receberam esta pesada herança, merecem um relato condizente e fidedigno que contribua com seu aprendizado político na luta pela cidadania. Pelo menos, algo que ajude a entender as coisas que ainda acontecem à nossa volta.

(*) Antonio Lassance é cientista político.
(fonte: agência Carta Maior)

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