Paulo Moreira Leite
Poucas notícias sobre a Operação Lava Jato causaram tanta indignação
nos meios jurídicos como a revelação de que delator Alberto Yousseff
pode voltar para casa com um prêmio de 2% sobre cada centavo que ajudar a
localizar em contas secretas no exterior. Isso quer dizer que, se
trabalhar direito, Yousseff pode embolsar até R$ 20 milhões, quantia
espantosa para um cidadão que, pela letra fria da lei, poderia acumular
penas de até 200 anos.
“Agora escancarou”, reage Antonio Claudio Mariz de Oliveira, que defende Eduardo Leite, executivo de uma empreiteira.
“É repulsivo,” afirma Nélio Machado, advogado do acusado Fernando Santana.
Para Claudio José Lagroiva Pereira, professor de Direito Processual
Penal na PUC paulista, instituição da qual foi vice-reitor, a decisão
envolve uma medida absurda: “como é que o Estado brasileiro vai tirar
uma porcentagem de um dinheiro que deve ser devolvido ao povo
brasileiro, pois é fruto da corrupção, para entregar a um bandido?”
Num país onde esse tipo de recompensa não é previsto pela legislação —
não consta sequer das regras que definem a delação premiada –, o acordo
reforça a visão de que o juiz Sérgio Moro está empenhado em obter
condenações fortes a qualquer preço — literalmente. A tradição jurídica
brasileira admite várias concessões a um acusado capaz de auxiliar no
andamento de um processo. Mas são acordos que envolvem redução de pena,
suspensão de acusações consideradas pouco consistentes e assim por
diante. Nem advogados nem autoridades ligadas ao mundo da Justiça já
tinham ouvido falar de um caso semelhante. Para um delegado ouvido pelo
247, e que já participou de várias investigações semelhantes, “pode ser
aceitável permitir que um condenando fique de posse de bens que ele pode
demonstrar que adquiriu honestamente. E só.”
O curioso é que há uma década o mesmo Sergio Moro acertou com o mesmo
Yousseff um acordo de delação premiada, que permitiu ao doleiro
safar-se das principais acusações, entregando pouco mais de 60
concorrentes no comercio ilegal divisas — inclusive Toninho da
Barcelona, o maior doleiro paulista na época — e cumprir uma pena
relativamente leve. Uma das cláusulas dos acordos de delação é óbvio: os
beneficiados assumem o compromisso de não retornar às atividades
ilegais. Embora não tenha cumprido sua parte do pacto, o que deveria ser
um agravante em seu caso, dificultando até um novo acordo acordo de
delação, em 2014 Yousseff conseguiu um segundo pacto, tão generoso que
lhe permite até cobrar comissão por serviços prestados.
“Estamos no mundo dos caçadores de recompensa,” afirma o professor
Claudio Lagroiva, apontando para um crescimento da influência da escola
utilitária da Justiça norte-americana no interior do Judiciário
brasileiro. Não é uma novidade que caiu do céu, já que, através de
acordos bilaterais de cooperação, mantidos pelo Departamento de Estado,
muitas idéias jurídicas dos EUA ganharam curso no país em anos recentes,
competindo com as escolas europeias que formaram boa parte de nossos
juristas.
No debate jurídico, o termo “utilitarismo” ajuda a designar práticas
destinadas a obter provas condenatórias de qualquer maneira, ainda que
seja possível ferir princípios maiores do Direito. Depois dos escândalos
financeiros dos anos 1990, os EUA se tornaram a pátria da delação
premiada, que permitiu ao chefe de uma quadrilha, que manipulava
informações privilegiadas acumular fortunas na Bolsa, salvar o pescoço
em troca da delação de sócios e parceiros.
Para falar num caso extremo: durante o governo George W. Bush, a Casa
Branca assinou um decreto que autorizava os interrogatórios por
afogamento de prisioneiros de guerra — o utilitarismo era dizer que essa
forma de violência não constituía tortura. O decreto foi revogado por
Barack Obama mas ainda hoje, em determinados estados, policiais acusados
de torturar prisioneiros podem até ser processados e cumprir penas —
mas as provas obtidas pela tortura não são anuladas, o que implica numa
forma de respaldo.
O emprego das prolongadas prisões preventivas por parte de Sérgio
Moro não é definida como tortura — é uma medida prevista em lei e os
prisioneiros têm sua integridade física preservada. Mas o regime é de
uma dureza peculiar, como descreve o advogado Nélio Machado, num habeas
corpus em que pede a soltura de seu cliente, detido, como a maioria, sem
provas. O acesso de familiares de cidadãos encarcerados nas celas da
Polícia Federal no Paraná, que são simples acusados, é mais restrito até
do que nas penitenciárias que guardam condenados com pena transitada em
julgado. O contato com advogados é mais restrito. O que se busca é uma
prova que guarda uma semelhança essencial com a tortura, mesmo que não
seja obtida com choques elétricos — uma confissão involuntária.
O utilitarismo é político, também. Como as investigações da Lava Jato
interessam aos adversários do governo Lula-Dilma, fecha-se os olhos a
um abuso. Imagine se o mesmo regime fosse empregado para se obter
confissões dos envolvidos no esquema do metrô do PSDB paulista.
Recorde-se a pronta resposta do Supremo Tribunal Federal quando
ocorreram as prisões dos acusados na Operação Satiagraha.
Para além do necessário debate jurídico, há uma questão política.
Quem lê um texto de Sérgio Moro escrito em 2004, “Considerações sobre a
Operação Manni Puliti,” constata que a Operação Lava Jato estava pronta
antes mesmo de aparecer a primeira denúncia sobre a Petrobras. Moro já
falava na necessidade de “deslegitimar” o sistema político — processo em
curso quando parlamentares e ministros são colocados contra a parede
por vazamentos cuja origem ninguém assume, cujo conteúdo integral
ninguém conhece.
Durante uma década a Lava Jato foi uma ideia em busca de uma
oportunidade, escrevi neste espaço, em 16 de janeiro. Num país onde os
principais meios de comunicação são adversários assumidos do governo
federal, não foi difícil obter adesão a suas ações, indispensável para
dar sustentação a uma operação dirigida contra o núcleo do sistema
representativo e da soberania popular.
No pedido de habeas corpus, Nélio Machado afirma: “impõe-se que o
magistrado do Paraná, o quanto antes, se dê por impedido ou se declare
suspeito, pelo inescondível apaixonamento que revela pela causa, que
parece ser, em boa verdade, a sua causa, que talvez possa chamá-la de
‘minha, ‘minha causa,’ou quem sabe ‘minha luta,’tarefa incompatível com a
judicatura, que há de ser impessoal.”
(fonte: http://paulomoreiraleite.com/author/pml2/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário