quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Racismo em alta mancha reputação da França


Leneide Duarte-Plon, de Paris

A França foi até pouco tempo considerada como um exemplo a ser seguido no continente. Não é mais. No relatório do comissário para os direitos humanos do Conselho da Europa, divulgado na terça-feira, 17 de fevereiro, o país passou a figurar na lista dos que sofrem "deterioração da coesão social".

Ser criticada em razão do "recuo da tolerância" e pelo "aumento de agressões verbais e demonstrações injuriosas com caráter odioso ou discriminatório" é um duro revés. Afinal, a França cultivava o histórico orgulho de ser "o país dos direitos humanos", epíteto sempre lembrado por jornalistas e políticos, em referência à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, elaborada logo depois da Revolução Francesa pela primeira Assembleia Nacional Constituinte francesa.

O comissário Nils Muiznieks, nativo da Letônia e diplomado em Ciências Políticas pela Universidade de Berkeley (EUA), pondera em seu relatório de 52 páginas que o antissemitismo e a islamofobia são muito graves em todos os países europeus que passaram pelo exame da Comissão de Direitos Humanos. Na França, contudo, esses dois tipos de racismo são mais graves e os casos mais numerosos porque o país reúne a maior população de judeus e de muçulmanos do continente, cerca de 600 mil para o primeiro e 6 milhões para o segundo grupo.

Na França, a coexistência de judeus e muçulmanos é muitas vezes explosiva, sobretudo por causa da ferida exposta pelo sexagenário conflito palestino-israelense, cada vez mais agudizado pela progressiva ocupação israelense dos territórios palestinos da Cisjordânia.
O comissário não mencionou em seu relatório, mas durante os bombardeios a Gaza, em julho do ano passado, o "país dos direitos humanos" foi o único Estado democrático no mundo que proibiu manifestações em defesa dos palestinos de Gaza, que vivem numa verdadeira "prisão a céu aberto", segundo organizações de direitos humanos insuspeitas. Em total desacordo com suas tradições de liberdade de expressão, o governo francês não deu autorização às manifestações em Paris, que não eram promovidas por muçulmanos, mas por partidos de esquerda e por cidadãos franceses pró-palestinos de diversas origens. O primeiro-ministro Manuel Valls justificou, sem convencer, que o país não podia importar para território francês o conflito Israel-Palestina. A tampa na panela não impede as vivas tensões: os simpáticos à causa palestina entenderam a proibição como um parti pris pró-israelense da parte do governo francês.

O atentado de janeiro contra um supermercado casher e outros atos anti-semitas recentes, assim como mais de uma centena de agressões a mesquitas somente este ano, comprovam que a mobilização nacional contra o racismo que o presidente François Hollande vai anunciar em breve é mais que oportuna.

Entrevistado pelo Le Monde, o comissário para os direitos humanos do Conselho da Europa disse que, ao reconhecer como um tipo de "apartheid" a exclusão de que são vítimas os moradores das banlieues, o primeiro-ministro Manuel Valls fez uso de um verdadeira arma de eletrochoque, prova de vontade política de atacar o problema.

Paradoxalmente, foi o mesmo Valls que, em setembro de 2013, ainda como ministro do Interior, declarou que "os ciganos (roms, em francês) têm vocação para voltar à Romênia ou à Bulgária e para isso é preciso que a União Europeia, com autoridades desses países, encontre um meio de integrar essas populações em sua terra de origem". Esse mesmo governo do primeiro-ministro Valls se orgulha de ter aumentado as expulsões de terrenos ocupados ilegalmente pelas populações ciganas e o envio aos países de origem dos que não têm documentos franceses.

A banalização do discurso discriminatório na França em relação a certas minorias – a mais visada é a comunidade de franceses muçulmanos – na boca de diversos políticos franceses, de esquerda como de direita e de extrema-direita, foi apontada pelo comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa como altamente preocupante. Segundo ele, esse tipo de linguagem envia um sinal à polícia, aos funcionários e aos cidadãos de que o discurso racista pode ser assimilado pela sociedade. Os policiais são frequentemente acusados de violência no tratamento com migrantes, vindos do mundo inteiro, que vivem ilegalmente em Calais, na esperança de atravessar o canal para chegar à Inglaterra.

Mesmo no que diz respeito à acolhida de exilados sírios que buscam a Europa fugindo da guerra, o comissário mostra como a França está longe de sua tradição de "terra de asilo". Em 2015, o país acolherá apenas 500 sírios, o mesmo que em 2014, enquanto a Alemanha deu asilo a 10 mil sírios no ano passado.

Evidentemente, a França não foi o pior aluno entre os países europeus, na visão da Comissão de Direitos Humanos. Mas já teve melhores notas. O relatório anterior, datado de 2006, apontava o país  como o berço dos direitos humanos na visão de muitos europeus. E constatava que ele oferecia "um alto nível de proteção aos direitos humanos".

Apesar de todas as reservas, Nils Muiznieks pensa que a França tem uma excelente legislação e mais instrumentos para implementar uma política de igualdade que a maioria de seus vizinhos. Entre muitas críticas, o relatório abre outra exceção: considera excepcional o trabalho das associações humanitárias.

Com o mesmo número de páginas, um relatório do governo francês respondeu às acusações sem, contudo, conseguir justificar todas as críticas apontadas no texto do Conselho da Europa.

(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Racismo-em-alta-mancha-reputacao-da-Franca/5/32906)

Nenhum comentário:

Postar um comentário