Antônio de Paiva Moura
A alteridade é a concepção que parte do
pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros
indivíduos. Alteridade é a capacidade de se colocar no lugar do outro na
relação interpessoal, ou a relação que temos com os outros, com consideração e
identificação. É dialogar com o outro em
condição de igualdade, seja ele quem for. Vivemos em um momento de radical
volta para si mesmo, exacerbação do ego. O outro passou a ser aos olhos do
indivíduo, um estranho. Os segmentos sociais considerados inferiores, como
indígenas, moradores de rua e menores abandonados são considerados e tratados
como inumanos.
No romance “Madame Bovary, de Gustave
Flaubert, escrito em 1856, um pacato médico do interior na França, Dr. Bovary
se casa com uma ambiciosa mulher. Ema Bovary é ávida de prazer, de glorias e
riquezas. Queria que seu marido fosse um médico notável para que ela também se
notabilizasse nas altas rodas da sociedade. Havia na vila um pobre garoto que
nascera com um pé virado para dentro. Aos doze anos de idade Hippolyte
trabalhava em um boticário e levava vida conformado com sua deformação física.
Mas Ema inventou que o Br. Bovary poderia operar o pé do garoto para que ele
caminhasse normalmente. Tanto fez que o médico acabasse sendo persuadido de que
deveria operar Hippolyte. Se desse certo, Ema já imaginava viajar com o marido
em conferências pela Europa, pousando ao lado do famoso cirurgião. Sem pelo
menos saber que tendões ele iria cortar no pé do garoto, o Dr. Bovary realizou
a cirurgia. A operação redundou em um fiasco e o médico teve que amputar a
perna do pobre garoto. A partir daí, Ema começou a desistir de viver com o Dr.
Bovary. Esse episódio ilustra o fato de muitos cientistas dissimularem seus
desejos de glória em nome do humanismo e da alteridade. No século XIX os surdos
eram considerados como seres primitivos, semelhantes aos homens das cavernas e
por esse motivo, próprios para experimentação científica. Sem anestésico,
abriam os ouvidos das cobaias que acabavam falecendo.
O egoísmo é em si um defeito de alma. Não pode e nem
vai melhorar a sociedade e aprimorar a relação entre as pessoas. Só uma
sociedade humana em sua raiz é possível acreditar no florescimento real das
individualidades. Ou seja, o indivíduo, como todo o seu repertório de
possibilidades, só se realiza de fato em companhia. Somos sempre com o outro.
Platão, na República, garantia que só
na polis o homem pode se realizar. A afirmação de seus dons mais valiosos só
está garantida na presença do interesse geral e do bem comum. O médico mineiro
Francisco Ferreira (2010) afirma que a verdadeira felicidade é a arte de saber
se sentir bem pelo bem que se praticou a alguém, independente da gratidão dessa
pessoa. Para Marx, se a sociedade não primar pelo social ela volta à barbárie.
A liberdade é uma conclusão coletiva. Não há liberdade solitária. A liberdade,
quando exercida coletivamente tem a perspectiva de sua ampliação e alargamento.
Um dos grandes dilemas do mundo
contemporâneo, que parece afetar todos os momentos do nosso dia a dia, é a
desvalorização da convivência. Essa consiste em descartar a maioria das
pessoas, a transformação do outro em lixo. Nosso tempo, ao afirmar laços cada
vez mais exclusivos e resumidos, faz do outro uma ameaça. Num tempo em que a
competição alcançou todos os terrenos (do mundo do trabalho às relações
afetivas) o outro é um ladrão do meu gozo potencial. Dai resulta a perda da
solidariedade. Como o próximo é meu inimigo potencial, é importante neutralizar
todos os seus eventuais méritos e vantagens. Outra consequência do estado de
guerra na qual Hobbes diz que o homem é o lobo do próprio homem, isto é, a luta
de todos contra todos, é a discriminação e o preconceito que passa a perseguir
os perdedores. (CUNHA, 2012) O projeto de se tornar uma pessoa excelente foi
trocado pelo desejo de se tornar uma pessoa distinta, como Ema queria que fosse
o Dr. Bovary.
Referências
CUNHA,
João Paulo. Não há liberdade solitária.
Estado de Minas / pensar. Belo Horizonte, 8 set. 2012.
FERREIRA, Francisco. Questões intrigantes. Belo Horizonte:
Mosaico Editorial, 2010
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