terça-feira, 28 de abril de 2015

Alteridade





Antônio de Paiva Moura

         A alteridade é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos. Alteridade é a capacidade de se colocar no lugar do outro na relação interpessoal, ou a relação que temos com os outros, com consideração e identificação.  É dialogar com o outro em condição de igualdade, seja ele quem for. Vivemos em um momento de radical volta para si mesmo, exacerbação do ego. O outro passou a ser aos olhos do indivíduo, um estranho. Os segmentos sociais considerados inferiores, como indígenas, moradores de rua e menores abandonados são considerados e tratados como inumanos. 

         No romance “Madame Bovary, de Gustave Flaubert, escrito em 1856, um pacato médico do interior na França, Dr. Bovary se casa com uma ambiciosa mulher. Ema Bovary é ávida de prazer, de glorias e riquezas. Queria que seu marido fosse um médico notável para que ela também se notabilizasse nas altas rodas da sociedade. Havia na vila um pobre garoto que nascera com um pé virado para dentro. Aos doze anos de idade Hippolyte trabalhava em um boticário e levava vida conformado com sua deformação física. Mas Ema inventou que o Br. Bovary poderia operar o pé do garoto para que ele caminhasse normalmente. Tanto fez que o médico acabasse sendo persuadido de que deveria operar Hippolyte. Se desse certo, Ema já imaginava viajar com o marido em conferências pela Europa, pousando ao lado do famoso cirurgião. Sem pelo menos saber que tendões ele iria cortar no pé do garoto, o Dr. Bovary realizou a cirurgia. A operação redundou em um fiasco e o médico teve que amputar a perna do pobre garoto. A partir daí, Ema começou a desistir de viver com o Dr. Bovary. Esse episódio ilustra o fato de muitos cientistas dissimularem seus desejos de glória em nome do humanismo e da alteridade. No século XIX os surdos eram considerados como seres primitivos, semelhantes aos homens das cavernas e por esse motivo, próprios para experimentação científica. Sem anestésico, abriam os ouvidos das cobaias que acabavam falecendo. 

O egoísmo é em si um defeito de alma. Não pode e nem vai melhorar a sociedade e aprimorar a relação entre as pessoas. Só uma sociedade humana em sua raiz é possível acreditar no florescimento real das individualidades. Ou seja, o indivíduo, como todo o seu repertório de possibilidades, só se realiza de fato em companhia. Somos sempre com o outro. Platão, na República, garantia que só na polis o homem pode se realizar. A afirmação de seus dons mais valiosos só está garantida na presença do interesse geral e do bem comum. O médico mineiro Francisco Ferreira (2010) afirma que a verdadeira felicidade é a arte de saber se sentir bem pelo bem que se praticou a alguém, independente da gratidão dessa pessoa. Para Marx, se a sociedade não primar pelo social ela volta à barbárie. A liberdade é uma conclusão coletiva. Não há liberdade solitária. A liberdade, quando exercida coletivamente tem a perspectiva de sua ampliação e alargamento.

         Um dos grandes dilemas do mundo contemporâneo, que parece afetar todos os momentos do nosso dia a dia, é a desvalorização da convivência. Essa consiste em descartar a maioria das pessoas, a transformação do outro em lixo. Nosso tempo, ao afirmar laços cada vez mais exclusivos e resumidos, faz do outro uma ameaça. Num tempo em que a competição alcançou todos os terrenos (do mundo do trabalho às relações afetivas) o outro é um ladrão do meu gozo potencial. Dai resulta a perda da solidariedade. Como o próximo é meu inimigo potencial, é importante neutralizar todos os seus eventuais méritos e vantagens. Outra consequência do estado de guerra na qual Hobbes diz que o homem é o lobo do próprio homem, isto é, a luta de todos contra todos, é a discriminação e o preconceito que passa a perseguir os perdedores. (CUNHA, 2012) O projeto de se tornar uma pessoa excelente foi trocado pelo desejo de se tornar uma pessoa distinta, como Ema queria que fosse o Dr. Bovary.


Referências
CUNHA, João Paulo. Não há liberdade solitária. Estado de Minas / pensar. Belo Horizonte, 8 set. 2012.

FERREIRA, Francisco. Questões intrigantes. Belo Horizonte: Mosaico Editorial, 2010



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