quarta-feira, 15 de abril de 2015

Multinacional do cigarro ameaça o Uruguai


Texto escrito por José de Souza Castro:
Existem no Brasil 52 leis, decretos, portarias ou resoluções federais que tentam proteger a população contra os riscos do tabaco. A primeira, uma portaria ministerial, data de 22 de setembro de 1988. Quantas estarão em risco, se a Philip Morris vencer uma disputa judicial contra o governo do Uruguai?
É grande a possibilidade de vitória da Philip Morris, na opinião da ONG Avaaz, que iniciou uma campanha pela Internet para tentar influenciar os juízes de um tribunal internacional que, no ano passado, decidiu a favor das empresas em dois terços dos casos. "As decisões do tribunal são compulsórias, ainda que muitos dos juízes sejam pessoas físicas com laços empresariais em vez de especialistas jurídicos imparciais", segundo a ONG.
São julgamentos secretos feitos no International Centre for Settlement of Investment Disputes (ICSID), organização de arbitragem ligada ao Banco Mundial. Uma justificativa para sua existência é que em muitos países os tribunais são corruptos, incapazes e injustos. Por isso, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos tem pressionado países a incluírem cláusulas em acordos comerciais, permitindo que empresas submetam disputas a arbitragens que se sobrepõem às cortes locais.
Em 2010, a Philip Morris, fabricante de cigarros com vendas em 180 países, inclusive no Brasil, recorreu ao ICSID contra o Uruguai, país com 3,3 milhões de habitantes e PIB de pouco mais de 50 bilhões de dólares. Menos do que o faturamento líquido anual da dona das marcas Marlboro e L&M, entre outras. Uma luta desigual num tribunal injusto.
É sabido o poder das gigantes do tabaco sobre a Justiça. No Brasil, por exemplo, ninguém ganhou contra alguma delas uma causa em última instância, apesar das muitas tentativas. Essa luta, nos Estados Unidos, inspirou John Grisham a escrever, em 1996, "The Runaway Jury", um best-seller publicado no Brasil pela Rocco com o título de "O Júri". Mais tarde, o autor vendeu os direitos cinematográficos do livro por US$ 12 milhões.
No livro, Grisham aborda o essencial da controvérsia do tabaco descrita exaustivamente por Richard Kluger no livro "Ashes to Ashes: America's Hundred-Year Cigarette War, the Public Health, and the Unabashed Triumph of Philip Morris". Mas a causa a ser decidida pelo júri não era contra a Philip Morris e sim contra uma fabricante fictícia, a Pynex. Pois, de bobo, Grisham não tem nada.
A Philip Morris entrou na Justiça pedindo indenização – não contra Grisham, mas contra o Uruguai – no valor de US$ 25 milhões, por perdas comerciais, segundo a revista uruguaia Búsqueda. As perdas seriam causadas por uma lei que exige que 80% do espaço em carteiras de cigarro sejam cobertos com avisos médicos e imagens de alerta. Acrescenta a Avaaz: "O hábito de fumar havia alcançado níveis críticos no país, matando cerca de 7 pessoas por dia, mas desde que esta lei foi introduzida, o índice de tabagismo diminuiu a cada ano. A multinacional tabagista Philip Morris argumenta que as advertências não deixam nenhum espaço para exibição de marcas registradas."
No Brasil, a Anvisa decidiu no dia 2 deste mês ampliar as advertências sobre os riscos de fumar nas embalagens de cigarros. Assim:
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Divulgação
Cerca de 30% da parte da frente da embalagem deverão ser ocupados por esta mensagem: "Esse produto causa câncer. Pare de fumar, disque 136". É o número do sistema de ouvidoria do SUS. Até então, as advertências ficavam só na parte de trás da embalagem e numa de suas laterais. A alteração nas embalagens já estava prevista no decreto que regulamenta a lei federal antifumo que entrou em vigor em dezembro e proíbe fumar em lugares total ou parcialmente fechados.
Fabricantes terão até o dia 1º de janeiro de 2016 para se adaptarem às mudanças. Mas a Associação Brasileira da Indústria do Fumo já avisou que esse prazo é curto e alegou, em nota, que a medida pode fortalecer o mercado ilegal de cigarros, que corresponde a cerca de 30% do consumo no país.
Se verdade, virão para cá mais cigarros do Paraguai. E não do Uruguai, a menos que a Philip Morris ganhe a ação e suma com as advertências nas embalagens de lá. Não há garantia, apesar do esforço da Avaaz, de uma vitória uruguaia. Como diz o "New York Times", o próprio processo de arbitragem é frequentemente unilateral, favorecendo empresas poderosas contra países pobres. Nas arbitragens, que são feitas em segredo, não há espaço para ouvir pessoas que possam ser prejudicadas, e não existe apelo. As regras do jogo são tais que, quando companhias buscam recuperar prejuízos, os painéis de arbitragem tendem a focar estreitamente numa questão: se os lucros da companhia foram afetados por uma ação governamental. Os árbitros não precisam considerar se a ação ou a lei em questão foram necessárias para proteger o meio ambiente ou a saúde pública ou mesmo para sustar um comportamento prejudicial da empresa.
Ou seja, mesmo que tais árbitros não sejam corruptos como alguns de nossos juízes, as regras a que obedecem são corruptas. E a Philip Morris, com sede na cidade suíça de Lausana, tem fundadas esperanças de conseguir que os juízes do ICSID aceitem seus argumentos de que o Uruguai descumpriu o tratado de investimentos que assinou com a Suíça em 1998.
Moral da história: é bom pensar bastante, antes de assinar um acordo internacional. Eles podem matar.
Por que um gigante como a Philip Morris decidiu atacar o pequeno Uruguai e não outro gigante como o Brasil? É porque quer vencer mais facilmente, para assustar outros países. A Organização Mundial de Saúde acompanha com interesse o caso. Teme que, se o Uruguai jogar a toalha, outros países, sobretudo os pobres, perderão a vontade de lutar contra o tabaco.
É quase o mesmo que perder a vontade de viver.
(fonte: blog da Kika Castro)

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