Texto escrito por José de Souza Castro:
Existem no Brasil 52 leis, decretos, portarias ou resoluções federais
que tentam proteger a população contra os riscos do tabaco. A primeira,
uma portaria ministerial, data de 22 de setembro de 1988. Quantas
estarão em risco, se a Philip Morris vencer uma disputa judicial contra o
governo do Uruguai?
É grande a possibilidade de vitória da Philip Morris, na opinião da ONG Avaaz, que iniciou uma campanha pela Internet para
tentar influenciar os juízes de um tribunal internacional que, no ano
passado, decidiu a favor das empresas em dois terços dos casos. "As
decisões do tribunal são compulsórias, ainda que muitos dos juízes sejam
pessoas físicas com laços empresariais em vez de especialistas
jurídicos imparciais", segundo a ONG.
São
julgamentos secretos feitos no International Centre for Settlement of
Investment Disputes (ICSID), organização de arbitragem ligada ao Banco
Mundial. Uma justificativa para sua existência é que em muitos países os
tribunais são corruptos, incapazes e injustos. Por isso, o Departamento
de Comércio dos Estados Unidos tem pressionado países a incluírem
cláusulas em acordos comerciais, permitindo que empresas submetam
disputas a arbitragens que se sobrepõem às cortes locais.
Em
2010, a Philip Morris, fabricante de cigarros com vendas em 180 países,
inclusive no Brasil, recorreu ao ICSID contra o Uruguai, país com 3,3
milhões de habitantes e PIB de pouco mais de 50 bilhões de dólares.
Menos do que o faturamento líquido anual da dona das marcas Marlboro e
L&M, entre outras. Uma luta desigual num tribunal injusto.
É
sabido o poder das gigantes do tabaco sobre a Justiça. No Brasil, por
exemplo, ninguém ganhou contra alguma delas uma causa em última
instância, apesar das muitas tentativas. Essa luta, nos Estados Unidos,
inspirou John Grisham a escrever, em 1996, "The Runaway Jury", um
best-seller publicado no Brasil pela Rocco com o título de "O Júri".
Mais tarde, o autor vendeu os direitos cinematográficos do livro por US$
12 milhões.
No
livro, Grisham aborda o essencial da controvérsia do tabaco descrita
exaustivamente por Richard Kluger no livro "Ashes to Ashes: America's
Hundred-Year Cigarette War, the Public Health, and the Unabashed Triumph
of Philip Morris". Mas a causa a ser decidida pelo júri não era contra a
Philip Morris e sim contra uma fabricante fictícia, a Pynex. Pois, de
bobo, Grisham não tem nada.
A
Philip Morris entrou na Justiça pedindo indenização – não contra
Grisham, mas contra o Uruguai – no valor de US$ 25 milhões, por perdas
comerciais, segundo a revista uruguaia Búsqueda. As perdas seriam
causadas por uma lei que exige que 80% do espaço em carteiras de cigarro
sejam cobertos com avisos médicos e imagens de alerta. Acrescenta a
Avaaz: "O hábito de fumar havia alcançado níveis críticos no país,
matando cerca de 7 pessoas por dia, mas desde que esta lei foi
introduzida, o índice de tabagismo diminuiu a cada ano. A multinacional
tabagista Philip Morris argumenta que as advertências não deixam nenhum
espaço para exibição de marcas registradas."
No Brasil, a Anvisa decidiu no dia 2 deste mês ampliar as advertências sobre os riscos de fumar nas embalagens de cigarros. Assim:
Divulgação
Cerca
de 30% da parte da frente da embalagem deverão ser ocupados por esta
mensagem: "Esse produto causa câncer. Pare de fumar, disque 136". É o
número do sistema de ouvidoria do SUS. Até então, as advertências
ficavam só na parte de trás da embalagem e numa de suas laterais. A
alteração nas embalagens já estava prevista no decreto que regulamenta a
lei federal antifumo que entrou em vigor em dezembro e proíbe fumar em
lugares total ou parcialmente fechados.
Fabricantes
terão até o dia 1º de janeiro de 2016 para se adaptarem às mudanças.
Mas a Associação Brasileira da Indústria do Fumo já avisou que esse
prazo é curto e alegou, em nota, que a medida pode fortalecer o mercado
ilegal de cigarros, que corresponde a cerca de 30% do consumo no país.
Se
verdade, virão para cá mais cigarros do Paraguai. E não do Uruguai, a
menos que a Philip Morris ganhe a ação e suma com as advertências nas
embalagens de lá. Não há garantia, apesar do esforço da Avaaz, de uma
vitória uruguaia. Como diz o "New York Times",
o próprio processo de arbitragem é frequentemente unilateral,
favorecendo empresas poderosas contra países pobres. Nas arbitragens,
que são feitas em segredo, não há espaço para ouvir pessoas que possam
ser prejudicadas, e não existe apelo. As regras do jogo são tais que,
quando companhias buscam recuperar prejuízos, os painéis de arbitragem
tendem a focar estreitamente numa questão: se os lucros da companhia
foram afetados por uma ação governamental. Os árbitros não precisam
considerar se a ação ou a lei em questão foram necessárias para proteger
o meio ambiente ou a saúde pública ou mesmo para sustar um
comportamento prejudicial da empresa.
Ou
seja, mesmo que tais árbitros não sejam corruptos como alguns de nossos
juízes, as regras a que obedecem são corruptas. E a Philip Morris, com
sede na cidade suíça de Lausana, tem fundadas esperanças de conseguir
que os juízes do ICSID aceitem seus argumentos de que o Uruguai
descumpriu o tratado de investimentos que assinou com a Suíça em 1998.
Moral da história: é bom pensar bastante, antes de assinar um acordo internacional. Eles podem matar.
Por
que um gigante como a Philip Morris decidiu atacar o pequeno Uruguai e
não outro gigante como o Brasil? É porque quer vencer mais facilmente,
para assustar outros países. A Organização Mundial de Saúde acompanha
com interesse o caso. Teme que, se o Uruguai jogar a toalha, outros
países, sobretudo os pobres, perderão a vontade de lutar contra o
tabaco.
É quase o mesmo que perder a vontade de viver.
(fonte: blog da Kika Castro)
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