por Eric Nepomuceno
Agora em maio, e depois de 17 anos, voltei a Lisboa. A cidade mudou
muito, e para melhor. A luz é a mesma de sempre, belíssima nesta época
do ano. Mas a paisagem humana é outra: os homens já não são taciturnos,
as moças são mais belas. Lisboa é uma cidade arejada, que se modernizou
sem exageros, sem perder a serena melancolia de sempre, só que agora
mesclada com cores juvenis. Por onde andei em Portugal, tropecei com
estrangeiros. Lisboa, Porto, Braga, eles estão em todo lado, e são
multidão.
Aliás, esse insólito fluxo de turistas – o número de
estrangeiros visitando Portugal mais que dobrou em menos de cinco anos –
é essencial para ajudar a agüentar o duro preço da crise, imposto pelas
medidas da União Européia. Em 2014, cerca de 16 milhões de
estrangeiros deixaram 28 milhões de euros por dia no país. Dez bilhões
de euros, o suficiente para cobrir 80% do déficit da balança comercial
de bens do país.
Estrangeiros também são especialmente
bem-vindos na vizinha Espanha, um dos campeões mundiais de turismo. Em
2014, 65 milhões de estrangeiros deixaram uns 63 bilhões de euros. O
número de turistas superou, com folga, a população do país, que ronda a
casa dos 45 milhões de habitantes. Aliás, esses visitantes são
responsáveis por mais de 10% do PIB espanhol.
Na Europa, só a
França recebe mais estrangeiros que a Espanha: 84 milhões em 2014, que
asseguraram ao país o título de campeão mundial de turismo.
A
Itália é outro país que não pode se queixar: 45 milhões de visitantes
estrangeiros no ano passado. Também lá, o turismo responde por 10% do
PIB, além de propiciar empregos diretos e indiretos a dois milhões de
italianos. É o quinto país mais visitado do mundo.
Há outros países, é claro, que adoram receber estrangeiros, como a
Alemanha e a Inglaterra, que ocupam a sétima e a oitava posição entre os
campeões mundiais de turismo.
Somados os estrangeiros que em
2014 visitaram essa meia dúzia de países, deixando bilhões e bilhões de
euros, chega-se a uma população maior que a do Brasil.
Existe,
porém, outro tipo de estrangeiro, que vem ocupando espaço cada vez maior
nas iniciativas dos governos europeus: os que se lançam, desesperados,
às águas do Mediterrâneo, fugindo da fome, da miséria, da violência, do
desespero. Fugindo da guerra, fugindo da morte.
E aí, a história
muda. É gente que vem da Síria em guerra, da Líbia esfacelada, de
países em turbilhão. A maioria chega e pede asilo. Mas também se contam
aos milhares os que entram clandestinos e clandestinos ficam, na
esperança não de uma vida melhor, mas de uma vida.
Há os que não
conseguem jamais pisar terras européias: naufragam no Mediterrâneo em
embarcações precárias, atopetadas de gente. Suas esperanças ficam
enterradas, para sempre, nas águas.
Só nos primeiros meses de
2015 mais de dois mil morreram na travessia. Suas mortes foram tantas,
que a União Européia resolveu tomar medidas urgentes. Afinal, não é nada
agradável ver isso acontecer na frente das mesmas praias que daqui a
pouco, no verão europeu, receberão aqueles outros estrangeiros, os tão
bem-vindos turistas.
Atônitos diante da chegada crescente desses estrangeiros
desclassificados – não querem turismo, querem fugir do horror e da morte
– os governos europeus resolveram tomarmedidas urgentes.
Num
primeiro momento, foi feita uma divisão, estabelecendo as cotas de
asilados que cada país integrante da União Européia deverá receber. E
começou a confusão.
A Inglaterra, por exemplo, oitavo país a
mais receber turistas em todo o mundo, disparou, veloz: não receberá um
único asilado. Outros países foram logo dizendo que já fazem muito
esforço para acolher refugiados, e que novas cotas terão de ser
cuidadosamente estudadas.
Acontece uma assombrosa tragédia nas
águas do Mediterrâneo, com dezenas de milhares de pessoas arriscando o
que lhes resta de vida em busca de alguma esperança, atopetando
embarcações precárias, e os países europeus discutem porcentagens.
Há,
enquanto isso, outro foco de perversidade: os refugiados, os
desesperados, abandonam o litoral africano e entregam seus destinos nas
mãos de quadrilhas de contrabandistas de gente. Os preços cobrados pelos
bucaneiros da esperança variam de acordo com o grau de desespero de
quem quer fugir do inferno. Custa caro fazer a viagem que tanto poderá
levar para a terra da promissão como para o fundo eterno das águas.
A primeira medida concreta adotada pelos humanistas da União Européia
foi dirigida precisamente contra os donos dessas embarcações. Na
segunda-feira, 18 de maio, foi aprovada a criação, com urgência, de uma
operação naval para combater o que se chamou de ‘tráfico de pessoas’
pelo Mediterrâneo. Alemanha, França, Itália, Espanha e o solene Reino
Unido se comprometeram a enviar navios de guerra.
O primeiro
passo da operação será estruturar um serviço de inteligência para
detectar as rotas e os responsáveis pelo tal ‘tráfico de pessoas’ no
norte da África. O segundo, inspecionar as embarcações. O terceiro:
destruir todas elas.
Parece que não se pensou no óbvio: quanto
menos embarcações houver, mais pessoas lotarão as que sobrarem. Se agora
as que navegam já estão atopetadas, é fácil calcular como estarão as
que conseguirem escapar da tal operação naval.
Mas essa questão – a dos desesperados –, fica para outra discussão, a das tais cotas.
O
importante agora é correr contra o tempo: afinal, vem aí o verão
europeu. É quando engrossam de maneira formidável os contingentes
daquele outro tipo de estrangeiro, o ansiosamente esperado: o dos
turistas.
Para esta Europa de hoje, um turista é um estrangeiro especial. Já um refugiado é um estrangeiro indesejável.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-Europa-e-os-naufragos-da-esperanca-I-/4/33529)
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