Para compreender onda de fundamentalismo e crimes de ódio, que se
espalha por países como EUA e Brasil, é indispensável examinar papel de
certos programas de TV
Por Sandro Ari Andrade de Miranda
O crescimento dos crimes de ódio é um fenômeno global! Sustentada por
preconceitos e por valores fundamentalistas, temos observado uma onda
de violência desmedida em diversos lugares do planeta, exatamente no
momento em que explodem os meios de comunicação, o que, em tese, deveria
garantir maior acesso à informação.
O ataque a igrejas das comunidades negras nos Estados Unidos, o
espancamento de casais homoafetivos nas metrópoles brasileiras ou,
simplesmente, de pessoas que se acredita serem homoafetivos (como num
caso recente onde pai e filho foram espancados por simples manifestação
de carinho), o incêndio criminoso de mesquitas na França, o massacre
diário de palestinos pelo governo de Israel, são apenas alguns exemplos
de aberrações que vivenciamos todos os dias.
Pior do que isto, o simples ato de ser levantada opinião contrária à
dos ofensores ou dos grandes meios de comunicação também acaba
resultando em ameaças, perseguições e agressões. A internet, que deveria
ser o caminho da disseminação das informações transformadoras, tem sido
canal de propaganda da violência moral, da étnica, da sexual e da
simbólica.
Se durante o Iluminismo a luta por liberdade de imprensa e de opinião
resultou numa conquista sem precedentes para a humanidade, criando os
alicerces para a derrubada de impérios absolutistas, no mundo
contemporâneo, na maior parte das vezes, os meios de comunicação não
oferecem suporte à democratização da sociedade. Infelizmente, não são
raros os exemplos onde a mídia de massa funciona como elemento de
fomento a ódios, preconceitos e violência desmedida, como no caso do
nazismo, do fascismo, e da islamofobia instaurada depois de 11 de
setembro.
Os meios de comunicação, especialmente os canais de televisão,
cumprem um papel decisivo no fomento ao preconceito, especialmente
através da construção de arquétipos, de personagens onde o oprimido é
sempre objeto de piadas. Portanto, os grandes meios de comunicação,
dominados por oligopólios e grupos conservadores, também são o ponto de
partida para vários crimes de ódio.
Num evento pré-campanha eleitoral em 2014, a novela Meu Pedacinho de Chão
da Rede Globo de televisão, direcionada a um público infanto-juvenil,
com primoroso trabalho estético e com rara qualidade de direção e
interpretação, mesmo com sua projeção atemporal, apresentou todos os
personagens negros como empregados, criticou o direito de voto dado aos
analfabetos, uma conquista democrática de 1988, sem questionar a origem
do problema, transformando trabalhadores analfabetos em pessoas
desinteressadas na aprendizagem e converteu o Coronel, vilão da
história, em herói redimido, num gritante retrocesso em relação ao
roteiro da novela original, que foi construída sobre o alicerce da
crítica social.
O que era para ser uma obra de arte, nos momentos citados foi palco
para a disseminação de preconceitos de forma subliminar, e reforço para a
campanha de ódio contra formas de pensar democráticas que é exercitado
no dia a dia pelos telejornais da emissora. Por sinal, as novelas da
Rede Globo, com raras exceções, sempre foram instrumentos de construção
de arquétipos destinados ao controle dos avanços sociais. Vejam o
exemplo “do bom e do mau sem-terra” no péssimo roteiro da reprisada
novela O Rei do Gado, uma “obra-prima do preconceito”.
E aqui nem falo de uma recente novela das 18 horas (Buggy Uggy)
ambientada na década de setenta, que tinha um militar moralista como
“pai de família exemplar”, e não fez qualquer referência aos crimes
praticados durante a “ditadura verde oliva” exercitados na mesma época.
Também nem falo da reiterada imposição da “ditadura da maternidade”
pelas novelas como única forma concreta de realização feminina.
Normalmente as personagens que não sonham em ser mães são apresentadas
como vilãs ou satirizadas, em síntese: mais uma forma de preconceito
propagandeado.
Nesses folhetins televisivos vemos a construção de “bons políticos”
que pregam discursos de um moralismo lamentável, enquanto passam o tempo
todo convivendo de forma pacífica com seus parceiros e “bons
correligionários”: latifundiários, grandes empresários, jornalistas com
condutas duvidosas e famílias tradicionais. Ou seja, “nas novelas
globais, o bom político é sempre aquele que defende o ideário e os
interesses da emissora, mesmo que estes estejam em conflitos com o
avanço da Democracia”.
No ano de 2011 os canais da Discovery divulgaram um interessante
documentário sobre o “perfilhamento racial” nos Estados Unidos e a forma
como a polícia, mesmo em Illinois, reduto eleitoral de Barak Obama,
continua prendendo pessoas de forma indiscriminada e sem justificativa
com base em elementos étnicos, muitos dos quais terminam na morte dos
acusados, sempre negros, pela ação policial.
Em algumas situações observamos a autovitimização do opressor como
instrumento de pregação do preconceito e de perpetuação do poder
dominante, como nos discursos inflamados de brancos contra as políticas
de quotas e de ação afirmativa, ou a patética conduta de alguns
parlamentares e religiosos brasileiros defendendo o “orgulho hetero”,
num claro ato de homofobia.
Aliás, enquanto o direito civil caminhou durante milhares de anos,
desde a sua matriz romano-germânica, para reconhecer que não existe
direito “de família”, mas “de famílias”, em suas diversas formas,
observamos a lamentável tentativa de retrocesso, com a tramitação no
Congresso Nacional brasileiro, do projeto de Lei do Estatuto da Família,
mais um arremedo de fundamentalismo, sexismo e homofobia.
O uso de símbolos opressivos ainda é pouco enfrentado na sociedade
brasileira, mesmo que a violência simbólica seja criminalizada na “Lei
Maria da Penha”. Este tipo de violência ainda é visto por determinados
setores da sociedade como não violência, como algo que afeta apenas a
subjetividade das vítimas. Assim, a violência simbólica segue servindo
como ponte para diversos tipos de preconceitos, ou como porta de
passagem para a violência física sem nenhum tipo de controle.
Portanto, se formos buscar a fonte da disseminação inconsequente dos
crimes de ódio, não poderemos deixar de questionar o papel dos meios de
comunicação de massa, ou da ação de alguns ocupantes de assentos nos
Parlamentos. Enquanto aceitarmos de forma acrítica que valores
conservadores sejam impostos às nossas casas todos os dias pelo rádio,
televisão ou internet, ou que o presidente da Câmara vá ao púlpito do
Congresso para ofender minorias, ou negarmos a violência simbólica,
ainda continuaremos convivendo com a chaga do preconceito!
(fonte: http://outraspalavras.net/blog/2015/06/30/as-maquinas-de-vender-intolerancia-e-preconceito/)
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