Como
a mistura explosiva entre o público e o privado, entre o Estado brasileiro e as
grandes construtoras, ergueu um monumento à violência, à beira do Xingu, na
Amazônia.
por Eliane Brum , no jornal El Pais
A
marca da corrupção no Brasil atual, assim como da relação explosiva entre o
Estado e as empreiteiras, tem como símbolo a Operação Lava
Jato e a Petrobras, para onde todos os olhos estão voltados. Sem
ignorar a enorme importância dessa investigação, há elementos para suspeitar
que o símbolo das ligações perigosas entre o público e o privado pode estar
também em outro lugar: na construção da polêmica hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, na Amazônia. É ela,
um projeto acalentado ainda na ditadura, mas só executado na democracia, nos
governos Lula-Dilma Rousseff, que une os fios desencapados da história recente
do país, expõe a coleção de mazelas sociais do Brasil e nos obriga a
compreender a corrupção também como um ato de extermínio. Belo Monte revela as
vísceras de um modo de operação que se consolidou na ditadura, atravessou
vários governos da democracia e permanece até hoje. A Amazônia, tanto como
criadora de sentidos para o Brasil quanto como lugar concreto onde as disputas
entre os vários atores se dá, não é a periferia do país, mas o centro. O que
precisamos, talvez, seja deslocar o olhar para ajustar o foco.
Esse
modo de operação, em que o público e o privado se misturam, é a chave para
compreender o “Dossiê Belo Monte: Não há condições para a Licença de Operação”,
documento publicado pelo Instituto Socioambiental no final de junho. Sabemos
que o dinheiro que se esvai na corrupção no Brasil é também o dinheiro que
falta para saneamento, educação e saúde, assim como para outros investimentos
prioritários. Mas sempre fica um pouco abstrato. Em Belo Monte, é possível
enxergar e quantificar o que a relação contaminada entre a concessionária Norte Energia e o governo
federal já causou nos últimos anos, entre 2010 e 2015.
O anúncio recente de que o Tribunal de Contas da União (TCU)
vai iniciar uma investigação sobre o uso de recursos públicos na construção da
hidrelétrica de Belo Monte é uma boa notícia. Mas ainda é muito pouco e chega
atrasada. A investigação do TCU atende a um pedido do Ministério Público
Federal: as empreiteiras investigadas pela Lava Jato por desvios de recursos na
Petrobras são as mesmas que constroem Belo Monte e, portanto, é importante
investigar sua atuação juntou a outra estatal, a Eletrobras, esta do setor
elétrico. Um dos delatores da Operação Lava Jato, Dalton Avancini, ex-presidente da
construtora Camargo Corrêa, já afirmou, em um dos depoimentos, que a
empreiteira se comprometeu a pagar ao PMDB uma propina de 20 milhões de reais
para atuar na construção da usina.
O
custo da hidrelétrica, segundo o TCU, é estimado hoje em 33 bilhões de reais.
Na época do leilão estava orçado em 19 bilhões de reais, um aumento, portanto,
mais do que considerável. A maior parte destes recursos vem do BNDES (Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Belo Monte é o mostruário – ou
“monstruário”, como alguns preferem – de como o público e o privado se
articulam na história recente do país. Mas, por atingir diretamente populações
discriminadas, cujo modo de vida e o conhecimento têm sido desqualificados por
séculos, caso dos indígenas e ribeirinhos, assim como uma região distante do
centro político e econômico do país, suas violações foram toleradas enquanto a
usina virava fato consumado à beira de um dos rios mais importantes da
Amazônia.
Neste
artigo, apresento a mais recente radiografia sobre o legado que a usina já
deixou ao Brasil, antes mesmo de começar a funcionar, mas também busco
compreender por que imaginários e caminhos históricos permitimos que algo assim
aconteça no século 21 e na democracia. Este é um momento crucial, já que Belo
Monte espera que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis) dê a Licença de Operação.
1) Arquitetura da
destruição
É
preciso observar com atenção a trajetória de Belo Monte, para compreender a
relação entre governos e empreiteiras. Em 2010, ainda no segundo mandato de
Luiz Inácio Lula da Silva, pouco antes do leilão da hidrelétrica, duas gigantes
do setor de construção, Odebrecht e Camargo Corrêa, anunciaram que haviam se
retirado do processo, por falta de “condições econômico-financeiras que
permitissem sua participação na disputa”. Dito de outro modo: o lucro não
estava garantido. Às pressas, o governo formou o consórcio Norte Energia, para
assegurar a disputa, já que só havia um outro consórcio candidato, o Belo Monte
Energia, do qual participavam a Andrade Gutierrez, Vale, Eletrosul, Furnas,
Companhia Brasileira de Alumínio e Neoenergia.
O consórcio formado pelo governo foi o vencedor do leilão. Era
composto por uma subsidiária da Eletrobrás, a Chesf (Companhia Hidro Elétrica
do São Francisco), e algumas construtoras de menor porte. Chegou a ser chamado
na imprensa de “consórcio das desconhecidas”. Na ocasião, o então presidente do
consórcio Norte Energia e diretor da Chesf, José Ailton de Lima afirmou, com
toda a razão, que as condições de financiamento oferecidas pelo BNDES para a
construção de Belo Monte “talvez sejam uma das melhores do mundo”.
O
mais interessante vem agora: as construtoras que participavam do consórcio
vencedor preferiram deixá-lo depois do leilão. Hoje, a Norte Energia é formada principalmente por estatais do setor,
como Eletrobrás, Eletronorte e a própria Chesf, e por fundos de pensão (Petros
e Funcef). Em resumo: em grande parte é pública. Cerca de 50% da composição
acionária pertence a empresas controladas direta ou indiretamente pela União.
Para
construir a hidrelétrica, a Norte Energia contratou o terceiro elemento da
arquitetura política e econômica da usina: o Consórcio
Construtor Belo Monte. E, adivinhem quem faz parte dele? Sim, as
gigantes do setor de construção, Odebrecht e Camargo Corrêa, que desistiram de
participar do leilão por falta de “condições econômico-financeiras”; a outra
gigante, a Andrade Gutierrez, que participava do consórcio perdedor; e as
construtoras que participavam do consórcio vencedor, mas o deixaram após vencer
o leilão. Podemos concluir que construir Belo Monte, contratada pela Norte
Energia, mostrou-se um negócio muito melhor para as empreiteiras.
Há ainda dois pontos importantes para
entender o que vem a seguir. Diante das violações de direitos e da série de
descumprimentos da Norte Energia, o Ministério Público Federal entrou com mais
de 20 ações contra a empresa. Em algumas destas ações, quando o MPF conquistou
uma decisão liminar que determinava a suspensão das obras da usina até que as
medidas (condicionantes) acordadas para a construção da hidrelétrica fossem
cumpridas, a Advocacia-Geral da União invocou um instrumento autoritário: “a
suspensão de segurança”. Este instrumento é concedido pela presidência de um
tribunal, que não analisa o mérito da questão, apenas se limita a mencionar
razões como “ordem, saúde, segurança e economia públicas”. No caso, alegava-se
que era preciso manter o cronograma da obra e, portanto, ela não poderia ser
paralisada por uma decisão judicial provisória. O uso da “suspensão de
segurança” garantiu que, quando o mérito da ação for finalmente julgado em
última instância, o que levará anos, Belo Monte já será fato consumado, como
testemunhamos acontecer.
Outro
ponto que chama a atenção é a forma como foram tratados os protestos contra as
arbitrariedades de Belo Monte, assim como as várias paralisações de operários.
O governo usou a Força Nacional para reprimir tanto as manifestações de
indígenas, ribeirinhos, agricultores e moradores urbanos atingidos pela
hidrelétrica quanto as greves de trabalhadores nos canteiros da obra. Uma escolha
surpreendente para um governo democrático.
A
pergunta óbvia é: onde acaba o público e começa o privado? Belo Monte é, ao
mesmo tempo, uma obra controlada em parte por estatais, financiada em grande
parte por um banco público e cujas posições da empresa são defendidas pela
Advocacia-Geral da União. Ao mesmo tempo, também é o governo o responsável, via
órgãos como Ibama e Funai (Fundação Nacional do Índio), por fiscalizar o
cumprimento dos acordos e o respeito aos direitos das populações atingidas.
É
bastante visível que há algo de obsceno nessa arquitetura.
No
dossiê sobre Belo Monte, a seguinte afirmação explicita a obscenidade: “Talvez
o maior desafio de Belo Monte consista em superar o conflito de interesses e as
contradições inerentes ao fato de se tratar de uma obra pertencente ao governo
federal, que é, a um só tempo, executada, financiada e fiscalizada pelo mesmo”.
O dossiê mostra também que o grosso das informações sobre as ações e o impacto
da construção de Belo Monte vem dos relatórios feitos e enviados periodicamente
pela Norte Energia. Em resumo: o Ibama fiscaliza com base no que é dito pelo
objeto de sua fiscalização.
Ainda
assim, ao longo do processo de licenciamento de Belo Monte, foram abertos
diversos processos administrativos contra a Norte Energia, que culminaram em
multas no valor total de 15 milhões de reais. Segundo o dossiê, nenhuma delas
foi paga até hoje.
É difícil imaginar um mundo mais
amoroso para a Norte Energia e para o Consórcio Construtor Belo Monte do que
este que os governos Lula-Dilma Rousseff criaram. Também é difícil imaginar um
mundo mais perverso para as populações atingidas e para o meio ambiente do que
este que os mesmos governos criaram. Mas o que precisamos entender é que
população atingida é também todo o conjunto de cidadãos brasileiros – e de
várias maneiras.
Essa
espantosa arquitetura é denunciada há anos por organizações socioambientais,
lideranças do movimento social do Xingu e especialistas do setor. Em 2011,
Célio Bermann, pesquisador da área energética e professor da Universidade de
São Paulo, fez uma análise profunda sobre o que afirmou serem as razões reais
pela qual se atropelava a lei para construir Belo Monte (leia aqui). Mais tarde, Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu
que há uma década é obrigado a andar com escolta policial por estar ameaçado de
morte pela sua defesa dos povos da floresta, deu um testemunho impactante sobre
como os movimentos sociais foram atropelados no processo (leia aqui). Dom Erwin auxiliou o Papa em sua recente encíclica
sobre a mudança climática, ao relatar a situação da Amazônia. O procurador da
República no Pará Felício Pontes foi um dos membros do Ministério Público
Federal que chamaram repetidamente a atenção para a tragédia anunciada, na
esperança de evitá-la (leia aqui).
A
pergunta é: por que não foram escutados?
2) Os espelhinhos do
século 21
Se
o Ibama der a Licença de Operação à Belo Monte, há poucas dúvidas de que, no
momento em que se iniciar o enchimento do reservatório da hidrelétrica, tudo o
que foi violado e descumprido pela Norte Energia e pelo atual governo também
será tão fato consumado – e impune – quanto a usina gigantesca. Desta vez, não
dá para empurrar o cumprimento do que não foi cumprido para a próxima etapa,
porque não haverá próxima etapa.
Tornou-se
uma alegoria do “descobrimento” do Brasil a troca com os indígenas de bens de
valor para os europeus por espelhinhos, objetos que a população originária
nunca tinha visto. Em Belo Monte, essa prática foi adaptada ao momento
histórico, alterando-se a lista de mercadorias, e reeditada, consumando um
processo de extermínio cultural e criando uma situação de insegurança alimentar
em aldeias afetadas pela hidrelétrica. Para se ter um quadro mais amplo do ovo
da serpente, leia “A anatomia de um etnocídio”, em que Thais Santi, procuradora
da República em Altamira, faz a relação entre conceitos da filósofa Hannah
Arendt e Belo Monte, com ênfase na eliminação da cultura dos povos indígenas no
raio de ação da maior obra em andamento no país.
O dossiê do Instituto Socioambiental
mostra que, durante dois anos, a Norte Energia deu uma espécie de “mesada” para
as aldeias atingidas, no valor de 30.000 reais. Funcionava assim: os caciques
enviavam a lista de mercadorias e a empresa as entregava. Segundo a Norte
Energia, 212 milhões de reais foram gastos com os povos indígenas. Mas, em vez
de o dinheiro ser investido na redução e na compensação dos impactos, foi usado
na compra dos espelhinhos deste milênio: barcos e voadeiras, motores para
barcos e voadeiras, milhões de litros de gasolina, caminhonetes (mesmo em
aldeias onde não havia estradas), camas boxer, TVs de plasma, açúcar,
refrigerantes, bolachas e salgadinhos, entre outros.
Essa
operação deflagrou, segundo técnicos que a testemunharam, “um dos processos
mais perversos de cooptação de lideranças indígenas e desestruturação social
promovidos por Belo Monte”. Em documento, o Distrito Sanitário Especial
Indígena de Altamira (DSEI), subordinado ao Ministério da Saúde, assim se
manifesta:
“A
partir de setembro de 2010, com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo
Monte, os indígenas passaram a receber cestas de alimentos, composta por
alimentos não perecíveis e industrializados. Com isso os indígenas deixaram de
fazer suas roças, de plantar e produzir seus próprios alimentos. Porém, em
setembro de 2012, tal ‘benefício’ foi cortado, os indígenas ficaram sem o
fornecimento de alimentos e já não tinham mais roças para colher o que comer, o
que levou ao aumento do número de casos de crianças com Peso Baixo ou Peso
Muito Baixo Para a Idade, chegando a 97 casos ou 14,3%”.
Em
outro ponto do documento, o DSEI de Altamira relaciona o aumento dos casos de
“doença diarreica aguda” em 2010 à atuação da Norte Energia nas aldeias:
“Em
2010 registramos um aumento considerável, já que numa população de 557 crianças
menores de 5 anos ocorreram 878 casos, o equivalente a 157% dessa população ou
1.576,3 para cada 1.000 crianças. (…) Mudanças nos hábitos alimentares com a
introdução de alimentos industrializados oriundos de recursos financeiros das
condicionantes para construção da hidrelétrica de Belo Monte é outro fator
contribuinte para o alto índice existente”.
A
desnutrição infantil nas aldeias da região, conforme dados do dossiê, aumentou
127% entre 2010 e 2012. Um quarto das crianças está desnutrida. No mesmo
período, ainda segundo o dossiê, o atendimento de saúde a indígenas cresceu
2.000% (dois mil por cento) nas cidades do raio de impacto de Belo Monte. A
situação é tão aterradora que, em 2014, técnicos da Funai recomendaram a
aquisição de cestas básicas para enfrentar a vulnerabilidade alimentar das
comunidades. Dito de outro modo: cestas básicas para impedir que indígenas, que
antes de Belo Monte tinham autonomia alimentar, hoje morram de fome ou de
doenças causadas pelo consumo repentino e indiscriminado de produtos
industrializados, assim como pela interrupção do plantio, pesca e coleta de
alimentos, causado pelo ingresso dos mesmo produtos.
O dossiê também mostra que a
hidrelétrica já deixou um “rastro de degradação ambiental e social dificilmente
reversível”. Segundo técnicos do Ibama ouvidos para a elaboração do documento,
Belo Monte se transformou num “sumidouro de madeira”. Boa parte da madeira
gerada pela obra apodreceu. As toras não foram sequer reaproveitadas na
construção da usina, como era exigido. Ao mesmo tempo, a Norte Energia comprou
enormes quantidades de madeira – 17.000 metros cúbicos só até dezembro de 2012
– de fornecedores externos. Essa demanda repentina é justamente o que os
programas ambientais lutam para evitar, já que a madeira comercializada na
região é quase toda ela obtida na ilegalidade.
Os
índices de exploração ilegal de madeira dispararam na área de influência da
obra. Na Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela usina, foram
extraídos 200.000 metros cúbicos de madeira só em 2014. Essa quantidade é
suficiente para encher mais de 13.000 caminhões madeireiros. Em 2013, a TI
Cachoeira Seca foi a mais desmatada do Brasil.
Qual
é a troca, de fato, entre a Norte Energia e os povos indígenas?
A
resposta talvez esteja na conclusão de uma indígena Araweté, ao testemunhar as
mercadorias entrando em sua aldeia. Ela disse ao antropólogo Guilherme Heurich:
“As mercadorias são a contrapartida de nossa morte futura”.
3) Somos filhos de quem?
Para
além do engendramento concreto de uma operação política e econômica como a de
Belo Monte, é preciso compreender como a população brasileira foi alertada para
o que aconteceria, ainda que bem menos do que deveria, e mesmo assim a
indignação ficou circunscrita a setores da sociedade, sem alcançar o conjunto
dos brasileiros. Belo Monte é um escândalo que não foi decodificado pelo senso
comum como escândalo. Em parte, porque uma parcela significativa da imprensa
não o tratou assim. Mas, se não nos compreendermos na História, há poucas
chances de que essa história, a de Belo Monte, não volte a se repetir em outras
regiões amazônicas.
A ideia que o senso comum ainda hoje
tem da Amazônia é a de uma propaganda, a da ditadura militar. Uma propaganda
muito eficaz e que, combinada à ignorância da maioria sobre a região, persiste
até hoje. É na ditadura que a Amazônia se torna uma imagem para consumo de
massa.
Até
então, as notícias chegavam à população na forma de informações vindas de uma
geografia nebulosa, tão fascinante quanto assustadora, em que se misturavam
eldorado, aventura e perigo. Soldados da borracha, Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, Fordlândia, Marcha para o Oeste, assim como os nomes do
Marechal Cândido Rondon e dos Irmãos Villas-Bôas, eram, entre outros, capítulos
de uma história fragmentada para a maioria dos brasileiros.
A
ditadura dá uma imagem coesa à Amazônia. E a dá como propaganda. A Amazônia
torna-se então “o deserto verde” ou “o deserto humano”. Torna-se também “a
terra sem homens para homens sem terra”. O imperativo de “integrar para não
entregar” é um slogan publicitário, invocando uma ameaça externa reeditada até
hoje, sempre que convém, para garantir a adesão da população. Como já se
provou, a maioria adora um nacionalismo de ocasião, mesmo que falso. Assim, a
Amazônia se torna a expressão de um vazio de gente e de uma riqueza
incalculável a ser tomada, garantida e explorada. Primeiro a terra, depois o
subsolo. E, como é um regime de exceção, as vozes de resistência que conflitam
com essa narrativa são abafadas ou mesmo silenciadas.
Nessa
propaganda há falsificações muito atuais, apesar de todos os avanços alcançados
na redemocratização e apesar da garantia de direitos aos povos indígenas e às
comunidades tradicionais na Constituição de 1988. A primeira ideia é de que não
há gente na Amazônia. É preciso, portanto, levar gente para lá, para ocupar o
território, garantir a soberania nacional e gerar riqueza. E como? Abrindo
estradas como a Transamazônica, criando projetos de colonização com agricultores
do sul e nordeste, aumentando a presença do Exército nas fronteiras.
Na
propaganda da ditadura, povos indígenas e populações ribeirinhas não são gente,
ou pelo menos não são “a gente certa”. Quando a admissão de sua existência é
obrigatória, são gente primitiva que precisa ser assimilada e salva pelo
progresso. Já que, se não fossem assim considerados, a Amazônia não poderia ser
vendida à população como um vazio ou um deserto humano. Nem poderia ser
ocupada. O que a ditadura fez com os povos da floresta, em especial com os
indígenas, é uma história que ainda precisa ser melhor contada. A Comissão da
Verdade que apurou os crimes da ditadura estima que mais de 8 mil indígenas
foram assassinados no período. É também nos anos do regime de exceção que a
imagem dos indígenas como “entraves ao progresso” é incrustrada no senso comum.
A
Realidade, a mais celebrada revista de grandes reportagens do jornalismo
brasileiro, fez, em 1971, uma edição antológica, toda ela dedicada à Amazônia.
Se as reportagens realizadas por alguns dos maiores repórteres e fotógrafos
brasileiros do século 20 continuam impressionantes, há duas outras partes desta
revista que também se tornaram um documento de grande relevância: a parte de
opinião, com a fala de ministros, generais e coronéis da ditadura, e a parte
dos anúncios publicitários. Estes são uma preciosidade para compreender o
imaginário da época e, assim, entender de onde viemos nós, que berramos que “a
Amazônia é nossa!”, mas nem por isso nos responsabilizamos por ela.
Como já destaquei neste espaço, há um entre os tantos
discursos da página de opinião da Realidade Amazônia que ilustra com total
clareza a mentalidade vigente. É o do gaúcho Carlos Aloysio Weber, então
coronel e ex-comandante do 5o Batalhão de Engenharia e Construção, um dos
primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Até hoje ele é
nome de escolas em Rondônia, entre outras homenagens públicas. O coronel é
apresentado como “lendário” naquele estado, afirmação que suscita arrepios. A
pergunta do jornalista é a seguinte: “Como é possível fazer as coisas na
Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:
-
Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença:
faz-se.
E
continua:
-
Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença,
chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos
espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse
dado certo, eu estaria na cadeia, velho.
Pois
é. Se os crimes da ditadura tivessem sido apurados e punidos, é possível que
militares como este tivessem sido colocados na cadeia.
Se falas como a desse coronel podem soar
absurdas hoje, ao acompanharmos grandes obras como a hidrelétrica de Belo Monte
é possível perceber que essa ideia continua muito presente. Continua ainda
muito atual, apenas com alguns disfarces, já que estamos num período
democrático. Neste momento, os direitos dos povos indígenas garantidos pela
Constituição de 1988 estão sendo atacados pelo atual Congresso, graças ao
tamanho e ao poder da bancada ruralista, aliada às bancadas da bala e da
bíblia. Há vários projetos de emenda constitucional que buscam esvaziar os
direitos dos povos da floresta, como a PEC-215. Como não é mais possível tratar os indígenas como
“não gente”, agora o que se diz deles é que “têm terra demais” ou que “não são
índios de verdade”.
Como
os indígenas se tornaram o que se chama de “sujeitos de direitos”, é preciso
tirar deles tanto o “sujeito” – razão da frase “não são índios de verdade” –
quanto o “direito” – “têm terra demais”. Essa parte está contada de forma
aprofundada em outros dois artigos: “Os índios e o golpe na Constituição” e “Índios, os estrangeiros nativos”.
O
indígena tem um lugar como alegoria no imaginário nacional, como um componente
de formação cristalizado no passado, quase uma gravura. Mas sua existência
concreta, sua história em movimento, e, principalmente, sua resistência como
protagonista histórico, o torna perturbador. A ideia dos povos indígenas como
“entraves”, agora não mais ao progresso, mas ao “desenvolvimento”, persiste no
senso comum. E “entraves” precisam ser “removidos”. Seja pelo extermínio
direto, o que já não é possível numa democracia, seja pelo extermínio cultural,
como a Norte Energia e o governo fizeram – e estão fazendo – em Belo Monte.
A aposta de setores da sociedade, como
os representantes do agronegócio e da mineração, ainda hoje, como costuma
afirmar o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (leia aqui), é “na conversão do índio em pobre”, da floresta
para as favelas. Devidamente transferidos para as periferias urbanas, abre-se
caminho para a exploração privada de suas terras ancestrais.
O
imaginário sobre a Amazônia e os povos da floresta tem sido construído ao longo
de décadas. Esta é uma das explicações possíveis para a evidência de que uma
parcela significativa dos brasileiros assimila o extermínio cultural dos
indígenas em Belo Monte com pouco ou nenhum escândalo. Somos tanto herdeiros
quanto reprodutores desta propaganda, e a maioria continua ainda agora
confundindo propaganda com verdade. Tanto sobre o imaginário da Amazônia quanto
sobre outras duas fraudes: a de que hidrelétrica na floresta é “energia limpa”
e a de que, se Belo Monte não fosse construída, assim como as grandes
hidrelétricas da Amazônia, não teríamos eletricidade para assistir à novela.
Essa simplificação da complexa questão das fontes e do consumo de energia, num
planeta assolado pela mudança climática, está a serviço de interesses poderosos
que pouco têm a ver com as necessidades concretas da população.
A
ignorância, porém, de modo algum nos absolve. Neste momento, isso nos faz
cúmplices de etnocídio. Hoje, nem a imprensa nem nenhum brasileiro pode usar a
desculpa de que está amordaçado pela censura de um regime de exceção.
4) Empreiteiras e
Estado, uma longa lua de mel à brasileira
A
outra falsificação da propaganda da ditadura sobre a Amazônia que persiste até
hoje é a da Amazônia como um corpo a ser violado e ocupado. Esse corpo é esvaziado
de sujeito e, assim convertido, torna-se um objeto. E, como objeto, é um objeto
de exploração.
Neste
sentido, talvez a imagem mais emblemática é a do general Emílio Garrastazu
Médici, presidente durante o período mais sangrento da ditadura, entre 1969 e
1974. Em entrevista já citada, Dom Erwin Kräutler conta do dia em que testemunhou o general
celebrar a Transamazônica, no início dos anos 70. O ato simbólico de Médici
para marcar o poder do homem sobre a natureza, tão típico da modernidade, foi a
derrubada de uma castanheira gigantesca. Neste gesto, podemos pensar numa alusão
ao poder do regime sobre os corpos torturados nos porões da ditadura até serem
esvaziados também eles de sujeito:
-
Ele (Médici) deu início às obras. Todo o pessoal delirando no palanque...
delirando mesmo! Batendo palmas! Gente, derrubando uma árvore daquelas! E
dizendo que era o progresso que estava chegando. Cortou-me o coração... Como é
que pode? Aplaudir que a rainha das árvores do Pará ou da Amazônia tomba, e com
um estrondo tremendo. Como é possível? Está escrito na placa que roubaram:
"O presidente da República dá início à conquista deste gigantesco mundo
verde".
A conquista da Amazônia era então
representada pela derrubada da castanheira, a árvore torturada até a morte por
ordem do general. O lugar que marca esse evento em Altamira é conhecido como
“Pau do Presidente”. O que é muito significativo. O presidente fálico, potente,
por um lado. Mas, por outro, de quem é o pau que ele cortou?
Essa
ideia, a da Amazônia como corpo para exploração, corpo sem sujeito, a ser
dominado, submetido e violado, que ganha uma forma na ditadura e símbolos como
este, continua bastante hegemônica no senso comum. É essa visão que prevalece
hoje na política de grandes hidrelétricas na Amazônia dos governos Lula-Dilma
Rousseff. O que é a imagem da hidrelétrica de Belo Monte, aquela monstruosidade
humana imposta sobre a floresta lá no meio do Xingu? Não seria ela também uma
espécie de falo, mas agora deslocado, já que os tempos são outros? O que
significa uma obra como esta no momento em que o mundo teme a mudança climática
causada pela ação do homem?
As
empreiteiras da Transamazônica e das grandes obras da ditadura são em grande
parte as mesmas que construíram Belo Monte na democracia. Hoje, algumas delas
têm diretores e donos na cadeia. A ditadura foi a lua de mel das empreiteiras
com o poder e, desde então, o Planalto e as empreiteiras são íntimos. Os
governos Lula-Dilma marcam um momento de muita sintonia nessa relação, mas
estão longe de ser os únicos. A “conquista” da Amazônia é um projeto do Estado
brasileiro com as grandes empreiteiras que atravessa governos da ditadura e da
democracia. É algo, portanto, que precisa ser entendido dentro de um contexto
amplo sobre como o público e o privado foram se articulando na história
brasileira.
O historiador Pedro Henrique Pedreira
Campos disseca essa relação numa tese de doutorado defendida na Universidade
Federal Fluminense (disponível para leitura aqui).
A tese virou o livro “Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura
civil-militar”, lançado em 2014 pela editora da UFF. As grandes
empreiteiras se nacionalizaram justamente nos anos JK (governo de Juscelino
Kubitschek, 1955-1960), com a construção de Brasília. Antes, as empreiteiras
eram regionais. Elas construíram concretamente Brasília e, simbólica e
concretamente, nunca mais saíram de Brasília.
Alguns
exemplos: a ponte Rio-Niterói foi feita por um consórcio que envolveu Camargo
Corrêa e Mendes Júnior. Itaipu foi feita pela Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez
e Mendes Júnior. A Transamazônica envolveu Mendes Júnior e Camargo Corrêa. Belo
Monte é construída por um consórcio de várias empreiteiras, entre elas Andrade
Gutierrez e Camargo Corrêa.
As
empreiteiras, portanto, são as mesmas antes da ditadura, durante a ditadura e
na redemocratização do país. O país mudou de regime, ganhou nova Constituição,
mas as empreiteiras continuaram as mesmas. Há uma frase sobre essa relação, no
livro de memórias de Samuel Wainer, polêmico homem de imprensa: “Naquele
momento, eu conheci uma figura indispensável à decifração dos segredos do jogo
do poder no Brasil: o empreiteiro”. Nada mais atual.
Uma
história interessante da relação entre empreiteiras, Estado e Amazônia pode ser
contada pela figura de Cecílio do Rego Almeida, falecido em 2008, que era
simultaneamente dono da construtora CR Almeida e “o maior grileiro do mundo”.
Ele havia ocupado na Amazônia uma área de cerca de 6 milhões de hectares,
composta por terras indígenas, terras públicas e assentamentos do Incra, que
ficou conhecida como “Ceciliolândia”.
A
área que ele se apropriou ilegalmente era equivalente à soma dos territórios da
Bélgica e da Holanda, em plena Terra do Meio, no Pará. O empreiteiro tornou-se
conhecido como “Dom Ciccillo” durante a ditadura, quando a CR Almeida abocanhou
37 grandes obras federais e se tornou uma potência. Até morrer ele costumava se
referir ao regime de exceção como “a mais leve das ditaduras”.
Quando
Marina Silva era ministra do Meio Ambiente, Dom Ciccillo a chamava de aquela
“indiazinha totalmente doente e analfabeta”. A Olívio Dutra, ex-governador do
Rio Grande do Sul e ex-ministro de Lula, coube o epíteto de “viado”. Ao se
referir a Chico Mendes, era nos seguintes termos: “Aquele seringueiro que se
fodeu”. Esta era a pessoa. E o personagem. Para conhecê-lo melhor, sugiro uma
reportagem da revista Caros Amigos, feita pelo jornalista João de Barros, em
2005 (reproduzida aqui).
O mais curioso, porém, aconteceu dois anos atrás, em 2013.
Naquele ano, o então deputado federal André Vargas conseguiu aprovar na
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados um
projeto homenageando Cecílio do Rego Almeida. Vargas pretendia dar o nome do
empreiteiro a um trecho da BR-277, entre Paranaguá e Curitiba, um dos
principais do sul do País. Em 2014, como se sabe, André Vargas foi expulso do
PT e cassado pela Câmara. Em 2015, foi preso pela Operação Lava Jato.
Dois anos atrás, porém, ele ainda era
o vice-presidente da Câmara, bastante influente no PT e no Congresso. O projeto
de lei era de 2009 e, no texto de justificativa, o deputado dizia o seguinte:
“Seu trabalho, o do Cecílio do Rego Almeida, foi perseverante em seu objetivo,
e agora, após a sua morte (...), este benemérito cidadão poderá receber a
merecida homenagem”.
“Perseverante”
é uma palavra e tanto para definir a vida pública de Dom Ciccillo, homenageado
após sua morte por um deputado do Partido dos Trabalhadores. Em 2015, com o
autor preso, o projeto foi arquivado no Senado.
A
relação entre os governos Lula-Dilma, Norte Energia e o consórcio de
construtoras na obra de Belo Monte deve ser desvendada a partir desse contexto
mais amplo. Se ela tem suas especificidades – e de fato tem –, também não pode
ser descolada de um modo de operação que ultrapassa este ou aquele governo e
que está profundamente infiltrado no Estado brasileiro.
A
“conquista” da Amazônia e todo o rastro de violências deixado por essa
experiência não poderiam ter sido consumados ao longo da história do Brasil sem
este outro tipo de “conquistador”. Em nossos dias, ele ganha o nome de
“empreendedor”.
6) Altamira, o inferno
sem verde
O
Dossiê Belo Monte, lançado pelo Instituto Socioambiental, com a colaboração de
técnicos que testemunham no cotidiano o impacto da hidrelétrica, mostra o que
aconteceu com Altamira e os municípios da região atingida pelas obras. Entre
2011 e 2014, o número de assassinatos por ano em Altamira saltou de 48 para 86
casos, um aumento de 80%. A taxa é hoje de 57 por 100.000 habitantes, cinco
vezes superior ao índice de homicídios considerado pela organização mundial da
saúde como “não epidêmico”.
O
número de acidentes de trânsito nos últimos quatro anos saltou de 456 anuais
para 1.169: um aumento de 144%. Só em 2014, o número de pacientes vítimas de
acidentes de trânsito registrados no Hospital Regional de Altamira aumentou
213% com relação a 2013.
A
situação do saneamento é aterradora. Foram construídos 220 quilômetros de redes
de esgoto e 170 quilômetros de redes de abastecimento de água, mas nenhuma casa
foi ligada ao sistema. Depois de mais de um ano discutindo de quem é a
responsabilidade, a prefeitura de Altamira anunciou no fim de junho a disposição
de criar uma empresa municipal para gerenciar o saneamento básico e realizar as
ligações. A Norte Energia pagará o custo dessas obras. A iniciativa, porém,
depende da aprovação do projeto pela Câmara de Vereadores.
As
taxas de reprovação escolar nos cinco municípios afetados diretamente por Belo
Monte cresceram 40,5% no ensino fundamental, entre 2011 e 2013, e 73,5% no
ensino médio, entre 2010 e 2013. Em Altamira, o abandono da escola no ensino
fundamental aumentou 57%, de 2011 para 2013. Professores da rede pública
relatam que um grande número de adolescentes trocou a escola pelos canteiros de
obras da usina.
Vale
a pena botar uma lupa sobre o que se chama de “remoções”. Palavra “técnica”
para o que na prática significa expulsão, o termo se tornou popular nas obras
da Copa do Mundo de 2014. É curioso como aceitamos fácil as palavras e passamos
a reproduzi-las. Aqui, “remoção” será usada sempre entre aspas, para manter o
estranhamento que a palavra deveria nos provocar. Isso caso fosse eu ou aquele
que lê este texto o “removido” de sua casa e do seu mundo em nome do
“desenvolvimento”.
No caso de Belo Monte, mais de 8.000
famílias – cerca de 40.000 pessoas – foram arrancadas – ou ainda serão – do
lugar onde vivem, trabalham, têm laços de parentesco e vizinhança, memória e
cotidiano. Mas, se a palavra “remover” é o primeiro estranhamento, a
brutalidade maior é na forma como isso se deu. A população atingida, parte dela
analfabeta, só teve assistência jurídica federal no início de 2015, quando a
usina já se preparava para pedir ao Ibama a licença de operação. Em todos os
anos de obra, ficou a mercê da Norte Energia e de sua equipe de dezenas de
advogados. Depois de uma audiência pública promovida pelo Ministério Público
Federal em novembro de 2014, a Defensoria Pública da União fez um enorme
esforço, já que faltam defensores em todo o Brasil sem que o governo se esforce
para suprir essa falha, e formou uma força-tarefa.
O
governo federal não se moveu para garantir acesso à justiça numa das maiores
obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ao contrário, deixou a
população abandonada. Mesmo quem mora nas grandes cidades e têm curso superior
sabe o quanto a justiça e sua linguagem são capazes de tornar analfabeto até
mesmo quem é pós-graduado. É fácil imaginar o impacto dessa realidade sobre
agricultores e pescadores, assim como a população urbana e pobre dos baixões de
Altamira, diante do poder da empresa concessionária.
O
“empreendedor”, a nova roupagem, muito mais palatável, do conquistador ou
colonizador, reproduz a lógica da dominação: para conquistar ou para colonizar
é preciso impor ao outro a sua visão de mundo. Para conquistar e colonizar – ou
para “empreender” – é preciso partir do princípio de que o outro que está lá
não tem conhecimento nenhum. Ele, o “empreendedor”, é o sujeito do corpo que
domina. Primeiro ao esvaziá-lo: no passado, de humanidade; no presente, de
identidade. Depois, há o domínio concreto, ao tornar esse corpo aquilo que ele
faz dele. Altamira vive essa realidade.
As
histórias das “remoções” lotam páginas e páginas com relatos de violências.
Houve quem tivesse saído e ao voltar para casa não encontrou nada no lugar.
Houve quem assinou com o dedo um papel que não sabia ler. O que atravessou o
processo, além da completa omissão do governo e do abuso de poder da Norte
Energia, foi o total desinteresse em compreender qual era o modo de vida das
famílias que arrancavam do lugar. Entender, para começar, o que era uma “casa”
para elas. Para quem fez o cadastro, a ideia de casa e de cotidiano era aquela
que traziam com eles de seus lugares de origem, tanto geográficos quanto de
classe. É possível perceber em vários textos e discursos, inclusive da
imprensa, o desprezo pelo que se chama de “casebres” ou mesmo “palafitas”.
Em
uma reportagem que publiquei neste espaço, chamada “O pescador sem rio e sem letras”, contei uma destas histórias
em que um Brasil apaga outro Brasil, o mais frágil e desamparado. Ao escutar a
história de Otávio das Chagas e de sua família (leia aqui) fica claro o alcance do que lhes foi arrancado, quando
toda a vida que conheciam, assim como as marcas que provam essa vida, viraram
literalmente água. Ao me contarem sua história, sem nada para provar que
existiram sobre uma ilha que já não mais existe, eles apontavam em total
desespero as cicatrizes na única geografia que lhes restou: o próprio corpo.
Por esforço da Defensoria Pública da
União, Otávio das Chagas conseguiu garantir uma casa num dos bairros
construídos pela Norte Energia. Isso o tornou um privilegiado entre as vítimas
de Belo Monte. Apenas 4% dos “removidos”, segundo o dossiê, receberam uma casa,
por total falta de informação e de orientação na realização do cadastro e na
negociação simulada que marcou o processo. Outros 75% receberam uma indenização
que não lhes permite comprar uma moradia, já que os preços em Altamira
explodiram desde o início da obra. E outros 21% tiveram uma indenização em
forma de carta de crédito.
Aqueles
que foram “realocados” ou “reassentados” estão distantes de seu modo de vida,
de seu trabalho, de seus laços de afeto e de solidariedade, da única vida que
conheciam. Muitos deles são, como Otávio das Chagas, pescadores sem rio e sem
peixe, arrancados de suas ilhas e jogados num conjunto habitacional distante de
tudo e no qual não se reconhecem. A imagem de Otávio das Chagas e de sua família
diante desta casa, deslocados de seu mundo e também de si mesmos, mostra que o
seu final apenas foi menos infeliz. Aqui, é a conversão de pescadores e
agricultores em pobres que testemunhamos. Diz Otávio das Chagas, o
transplantado de raízes decepadas e submersas:
-
Eu só sei viver na beira do rio. Meus meninos também só conhecem trabalho de
rio. É tão triste.
Em
uma entrevista à repórter Letícia Leite, do Instituto Socioambiental, a conselheira tutelar de Altamira Edizângela Barros contou que
a “remoção” de sua casa causou a primeira separação de dois dos seus filhos.
Mesmo quando teve de passar uma noite nas ruas de Altamira, Edizângela
conseguiu manter os filhos com ela. Com a “remoção”, longe de tudo e sem
transporte público, não foi mais possível. O corte simbólico entre o que há de
mais visceral, a relação entre uma mãe e seus filhos pequenos, sintetiza a
lâmina de Belo Monte sobre dezenas de milhares de vidas humanas.
É
neste ponto que a história está.
7) A guerreira Antonia
Melo despede-se de sua casa com a espinha ereta
No
sábado (4/7), houve uma festa de despedida para a casa de Antonia Melo,
anunciada como uma celebração “das histórias de vida e da identidade
amazônica”, assim como a “reafirmação da resistência aos grandes projetos do
governo, como Belo Monte”. Coordenadora do Movimento Xingu Vivo, aos 65 anos
Antonia Melo é o símbolo da luta contra Belo Monte e uma das mais importantes
lideranças da história do Xingu. Na defesa dos povos da floresta, dos
agricultores, mulheres e crianças, Antonia viu companheiros tombarem por tiro
de pistoleiro. Também ela frequentou listas de ameaçados de morte. Ao longo da
batalha contra a hidrelétrica, deixou o PT e tornou-se uma crítica de Lula e de
Dilma Rousseff. Quando conta as humilhações sofridas por um e por outro em
encontros no Planalto para discutir Belo Monte, seus olhos salgam-se. Em 2014,
seu coração, ferido de tantas maneiras simbólicas, quase soçobrou. Apenas
quase. Antonia fez uma cirurgia e se recuperou para voltar a denunciar as
violências infligidas por aquela que só chama de “Belo Monstro”. Também ela,
que já vive entre escombros dos vizinhos, será obrigada a deixar a casa na zona
urbana de Altamira, em que vive há 30 anos, nas próximas semanas. Perguntei à
Antonia Melo se sentia-se derrotada. Ela respondeu:
-
Não. Eu nunca me curvei. Ainda não é o fim.
Eliane
Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção
Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A
Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site:
desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:
@brumelianebrum
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