Antonio Gelis-Filho
As brutais medidas de austeridade econômica impostas pelas lideranças
europeias à Grécia em meados de julho têm sido analisadas de forma
isolada, como se seu significado maior pudesse ser desvinculado do
processo histórico subjacente do qual elas são mero sintoma. Esse
processo histórico subjacente é a crise estrutural do sistema-mundo
capitalista ocidental. Incapaz de produzir as altas taxas de crescimento
econômico necessárias para a manutenção do nível de consumo das décadas
do pós-guerra, e também incapaz de encontrar uma saída verdadeira para a
agudização da crise do modelo que explodiu em 2008, o core desse
sistema-mundo – Estados Unidos, União Europeia e Japão – já não consegue
evitar rachaduras no edifício de uma hegemonia que é rapidamente
perdida. É dentro desse contexto de declínio aparentemente já
irreversível que devemos analisar esses eventos recentes.
Segundo
muitos autores, tais como Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e
Wolfgang Streeck, a crise terminal do capitalismo ocidental teve início
nos anos 70 do século passado. A saída encontrada foi a financeirização
do sistema. O que antes era um capitalismo ancorado na dita “economia
real”, estimulando o consumo baseado na renda do trabalho, transforma-se
em uma fábrica de dinheiro sem lastro, estimulando o consumismo
patológico baseado na dívida. O colapso do bloco soviético deu um
segundo fôlego ao então já combalido modelo, mas esse curto fôlego seria
insuficiente para enfrentar a crise das dotcom da virada do século e
terminaria na crise de 2008. A saída? Criar ainda mais dinheiro sem
lastro real algum, dinheiro esse que somente existe na memória dos
computadores, concentrar a riqueza nas mãos de grupos cada vez menores e
controlar a reação da população empobrecida. Essa estratégia
desesperada agora encontra seus limites. Nos Estados Unidos, União
Europeia e Japão a concentração de renda aumenta e a pobreza também.
Números do governo alemão publicados em 2015, por exemplo, indicam que a
porcentagem da população do país vivendo abaixo da linha da pobreza é
de 15,5%, o maior porcentual desde a reunificação do país em 1990. O
olhar seletivo dos turistas deslumbrados não enxerga essa triste
realidade, a cada dia que passa mais óbvia para os próprios europeus.
Os desesperados da periferia europeia que ainda sonham com a integração
de seus países à União em crise, o fazem apenas como reação à
selvageria do capitalismo local pós-1989, no qual já há muito não
acreditam.
A ideia de justiça social, característica do projeto
europeu de uma união continental solidária e humanista, foi uma vítima
dessa tentativa desesperada das elites ocidentais de manterem a qualquer
custo uma hegemonia que lhes escapa das mãos. Desde seu início, o
projeto europeu nascia sob a marca da esperança de que a aproximação
entre os países evitaria novos desastres como os das guerras mundiais.
Essa aproximação foi inicialmente econômica, mas gradativamente
transbordaria para a cultura e para a política. O projeto da moeda
comum, implantada finalmente em 2000, seria mais um passo nessa
caminhada. Seu defeito mais óbvio, o de unificar monetariamente países
que não o são fiscalmente, seria suplantado pelo crescimento contínuo
que podia ainda ser sonhado nos anos 90 e pela expansão da União
Europeia para o leste, talvez com a incorporação de uma então combalida
Rússia pós-soviética em um futuro não muito distante. Alemanha, França e
Reino Unido disputariam a posição de país mais poderoso nessa polity,
com óbvio favoritismo para a primeira.
A população europeia,
embriagada pela possibilidade de consumir o necessário e o
desnecessário, fecharia os olhos para os muitos deficits na estrutura
pouco transparente e absolutamente não democrática dessa união. E foi
exatamente essa falta de transparência das decisões, esse deficit de
democracia, que se voltaria contra essa mesma população. As
consequências da falta de crescimento da economia real não podem ser
evitadas para sempre com a criação desenfreada de moeda lastreada em
nada. A incontrolável crise sistêmica que toma conta do capitalismo
liderado pelo ocidente levou as elites europeias a tomarem uma decisão. E
essa decisão, como mencionado acima, foi a mesma tomada pelas elites
norte-americanas e japonesas: concentrar renda e controlar a reação da
população. A crise da Grécia é apenas um sintoma mais visível desse
fato.
É muito frequente hoje o argumento de que “os gregos
fizeram as dívidas, agora que sofram para pagá-las”, com diversas
variações. Mas os rombos das contas gregas foram feitos em benefício de
uma pequena elite, com auxílio dos credores ocidentais que não exerciam a
prudência média de qualquer banqueiro e com ajuda de consultores
estrangeiros muito bem pagos para ajudar na criatividade com os dados. E
nenhum desses grupos pagará a conta, cujo impacto maior deverá cair
sobre os mais pobres, exatamente aqueles que menos se beneficiaram.
O
acordo entre os membros da zona do euro é tão draconiano em seus termos
quanto inviável em sua aplicação, algo já reconhecido até pelo FMI.
Nada foi realmente decidido naquela reunião. Nada será. A população
europeia, incrédula, assiste à destruição do modelo no qual projetara
por tanto tempo seus sonhos de uma vida digna e, desmoralizada, não
consegue reagir. O barco europeu, assim como os barcos norte-americano e
japonês, está à deriva, suas velas sopradas apenas pela ganância
desmedida de uma elite predatória que não enxerga solução para a crise e
que agora tenta apenas se salvar. A crise do capitalismo ocidental
parece caminhar rapidamente para uma nova rodada de agudização. Os
detalhes desse desfecho, como seu timing e sua intensidade são
imprevisíveis, mas uma vítima dessa nova fase da crise já pode ser
identificada: o casamento entre a União Europeia e as esperanças de sua
população acabou. Esse divórcio já pode ser percebido no crescimento dos
partidos eurocéticos, na convocação de um plebiscito para decidir pela
permanência ou não do Reino Unido na União Europeia, nas decisões
unilaterais e questionáveis tomadas por alguns de seus membros, nas
ameaças à liberdade de ir e vir através dos diferentes países-membros,
no aumento do antissemitismo e da islamofobia. Novas “Grécias” se
sucederão, acidentes previsíveis em um projeto em desintegração. E salvo
por um rápido e decidido despertar da população europeia para a
necessidade de solidariedade econômica e social, esses acidentes
previsíveis em algum momento não muito distante poderão dar lugar aos
acidentes imprevisíveis, os quais a história do continente infelizmente
conhece muito bem. A Europa dos povos deu lugar à Europa das elites, e a
reversão desse processo será muito difícil. Sem essa reversão, a União
Europeia gradativamente perderá seu conteúdo, sobrevivendo como uma
casca burocrática vazia. O projeto que pretendia ser a recriação do
Império Romano em uma versão democrática terá então se tornado uma mera
reedição republicana do Sacro Império Germânico, a patética polity
milenar que sobreviveu tanto tempo em grande parte graças à sua
insignificância real. Para o projeto de uma Europa humanista e
progressista, exemplo a ser seguido pelo resto do mundo, o sonho
acabou.
(fonte:http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Europa-o-sonho-acabou/6/34023)
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