por Jaime Pinsky
Justiça e religião buscam estabelecer o que é certo e o que é errado. A
primeira trabalha com leis e punições, a segunda com dogmas e punições.
Leis, em princípio, decorrem do estado civilizatório de determinada
sociedade, possuem historicidade, são revogáveis e assumidamente
falíveis. O tempo muda os costumes (como já dizia Cícero), os costumes
mudam as leis. A verdade de hoje pode ser obsoleta amanhã (que tal a
legislação a respeito de dejetos de cavalos no centro de nossas cidades,
por exemplo?). Mais ainda, pode estar superada pelas novas práticas
sociais. Não é por outra razão que o Direito é uma ciência social. Não é
ciência exata, não é ciência da natureza, diz a respeito de práticas
que ocorrem nas sociedades humanas concretas.
Dogmas, por definição, possuem outra natureza. Se um fiel acredita que
uma verdade foi revelada pelo seu deus, não há como provar o contrário,
uma vez que a verdade que ele ostenta não é relativa (ao tempo
histórico, aos costumes), mas absoluta. Basta ter fé para carregar
aquela verdade no peito. Quando aquele que tem fé também possui poder
para impor sua fé estamos em uma situação explosiva. Como ele crê,
acredita que deve fazer com que todos, por bem ou por mal, partilhem de
suas verdades. Mais ainda, ele acredita ser sua obrigação espalhar suas
verdades (não podemos nos esquecer, para ele suas verdades não são
verdades passageiras, transitórias, são verdades divinas, são as verdades). Com o poder em mãos o crente transforma-se em fanático, disposto a matar (ou morrer) para impor suas verdades.
Ao longo da História podemos identificar diferentes situações em que
fanatismo acrescido de poder perpetrou barbaridades sem par. Nossa
civilização ocidental tentou, muitas vezes, impor suas verdades. As
inquisições portuguesa e espanhola, os cruzados, os conquistadores da
América não podem ser esquecidas quando pensamos em consequências
terríveis da união de fé com poder. Com as ideias da Revolução Francesa o
Ocidente foi se tornando mais laico, e a separação entre Estado e
religião foi conquistando quase toda a Europa e Américas. As pessoas têm
o direito de professar a religião que quiserem, mas não há religiões
oficiais, apesar de alguns ranços simbólicos ainda permanecerem em
alguns lugares. Praticar uma fé por escolha, não por imposição, praticar
sincretismos existentes ou inventados por cada um, ou não praticar fé
alguma é uma conquista da cidadania.
Infelizmente isto não aconteceu no mundo muçulmano. Em grande parte dos
países onde o islamismo é majoritário, não há liberdade para praticar
outras crenças. Em alguns deles é até proibida a construção de templos
cristãos. Imagine-se a grita se isto ocorresse em algum país europeu, ou
americano, com relação a construção de mesquitas...
Claro que é preconceituoso e muito equivocado culpar todos os muçulmanos
por atentados perpetrados por terroristas islâmicos. Seria o mesmo que
acusar todos os brancos americanos pela loucura de um racista contra um
grupo de negros no sul dos EUA. Mas não se pode negar que racistas
americanos não estão no poder e dificilmente chegarão a estabelecer uma
politica de estado ou de governo de cunho racista. Já não se pode dizer o
equivalente no mundo muçulmano. Estados constituídos, como a Arábia
Saudita, ou o Iêmen, assim como grupos altamente organizados (como o
Estado Islâmico, com raízes solidamente implantadas na Síria, no Iraque e
na África Saariana) assumem enfeixar fé e poder para implantar suas
ideias a ferro e a fogo.
Durante parte da Idade Média ocidental, quando a Europa estava
mergulhada no atraso decorrente do poder eclesiástico articulado ao
feudalismo, as ideias e práticas trazidas pelos conquistadores
muçulmanos pareciam uma aragem fresca na pasmaceira econômica, social e
cultural. Muitos dos conquistadores tiveram a visão de permitir uma
liberdade religiosa bastante grande (considerando a época, é claro).
Médicos e filósofos islâmicos, cristãos e judeus trabalhavam juntos;
cidades como Córdoba e Granada eram centros culturais acima das
religiões. Por circunstâncias históricas, que não podem ser atribuídas
simplesmente ao imperialismo ocidental (vilão cômodo de ser acusado),
mas têm a ver com a estrutura de poder que não se modernizou em grande
fatia do mundo muçulmano, hoje esta parte do planeta ficou para trás,
mesmo quando e onde o dinheiro corre fácil.
Ainda são poucos os islâmicos que pregam uma reinvenção da religião e sua adequação ao mundo moderno.
É de se esperar que o coro engrosse. Parece uma boa ideia.
Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros
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