domingo, 30 de agosto de 2015

Os migrantes e a tragédia do século

por Flávio Aguiar, de Berlim

A crise financeira que se espraiou a partir da China e de sua economia que revelou suas fraquezas.

O assassinato ao vivo de dois jornalistas nos EUA, reacendendo debate sobre posse de armas naquele pais.

A recuperação, ainda que parcial, dos preços do petróleo no mercado internacional e a decorrente valorização das ações da Petrobras (que está longe de ser a massa alquebrada que nossa velha mídia quer que ela seja).

Correu mundo e manchetes a denúncia feita pelo doleiro Alberto Yousseff na CPI, em Brasilia, sobre ter o senador Aecio Neves recebido propina de Furnas. A noticia só foi escondida pela velha mídia brasileira. Além da denúncia em si, que deve ser averiguada e provada, o ocorrido expôs a parcialidade da nossa velha mídia e a fragilidade dos vazamentos da Operação Lava Jato.

Mas as manchetes principais foram para a terrível tragédia dos migrantes na Europa. Mais de 70 corpos em decomposição foram encontrados dentro de um caminhão abandonado numa auto-estrada austríaca. Inicialmente a policia estimou os corpos em 20, depois em 50 e finalmente em “mais de 70”. A imprecisão das cifras deveu-se ao adiantado estado de decomposição dos corpos. O caminhão pertencera a uma empresa transportadora de galináceos da Eslováquia, que afirmou tê-lo vendido em 2014. Estava em nome de um cidadão romeno e tinha placa da Hungria. Na manhã da sexta-feira a policia húngara afirmou ter detido o motorista suspeito, além de alguns possíveis cúmplices.

Na quarta-feira foram encontrados 50 corpos no porão de um navio no Mediterrâneo, que tinha 450 pessoas a bordo.

na quinta-feira mais um naufrágio neste mar, desta vez ainda perto da costa da Líbia, provocou a morte de pelo menos 200 pessoas. Outras 200 conseguiram se salvar, socorridas por navios ou conseguindo chegar à terra firme.

Uma vaga de milhares de migrantes, vindos sobretudo da Síria e do Iraque, conseguiu “furar” o bloqueio do Exército da Macedônia junto à fronteira grega. A Macedônia acabou pondo trens á sua disposição, para que eles atravessassem em direção à Sérvia. Deste país eles pretendem passar à Hungria e dali para a Europa Ocidental. A Hungria está construindo um muro na fronteira com a Sérvia, mas até o momento os migrantes têm conseguido atravessar.

Houve uma mudança de rota no caso de muitas destas correntes migratórias. A Líbia continua sendo a rota preferida pelos que vêm da Nigéria, da Eritreia e da Somália e tentam ingressar na Europa pela costa italiana. Mas no momento a maior massa de migrantes vêm da Síria e do Iraque, preferindo estes o caminho da Turquia ou da Grécia.

O fluxo de imigrantes provém de países desorganizados por guerras civis, em alguns casos com ajuda decisiva de potências ocidentais, como no caso da própria Líbia, do Iraque e da Síria. A emergência do Exército Islâmico na Síria e no Iraque só piorou a situação.

A chanceler Angela Merkel e o presidente François Hollande se reuniram durante a semana para concertar uma ação conjunta diante da questão. O maior problema está no convencimento de outros dirigentes em aceitar quotas de imigrantes refugiados.

Há forte resistência por parte de muitos europeus em assumir a responsabilidade diante do fenômeno. Nesta semana ouvi a entrevista de uma deputada polonesa, do campo conservador, junto ao Parlamento Europeu, dizendo que a Polônia não receberá estes imigrantes, porque são indesejáveis, na maioria só querem se beneficiar das vantagens europeias, muitos são terroristas, etc. Acrescentou ela que, caso recebesse imigrantes, o país só aceitaria “aqueles que fossem cristãos”. A deputada teve sorte de não ser eu o entrevistador, porque eu perguntaria a seguir, na lata, se esta afirmação implicava também a exclusão de judeus.

Na Alemanha prossegue o novo “esporte” neo-nazista: queimar abrigos presentes e futuros destinados aos refugiados. O incidente mais grave aconteceu na cidade de Heidenau, perto de Dresden, no estado da Saxônia, onde houve um confronto entre policiais e manifestantes que tentavam incediar um destes abrigos. Os manifestantes mais exaltados gritavam “Heil Hitler” e outros slogans nazistas. Também cantavam “Wir sind das Volk”, “Nós somos o povo”, slogan das manifestações que antecederam a queda do muro de Berlim em 1989, e que agora está sendo apropriado pela extrema-direita. O vice-chanceler Sigmar Gabriel, do SPD, e a chanceler Angela Merkel estiveram em Heidenau, condenando as manifestações. Depois disto a sede do SPD em Berlim recebeu uma ameaça telefônica dizendo que havia uma bomba no prédio, que foi evacuado. Além da ameaça a pessoa que telefonou também proferiu slogans racistas. Nenhuma bomba, no entanto, foi encontrada.

No fim de semana estava prevista uma festa para receber os refugiados em Heidenau. Diante da ameaça, por parte de elementos da extrema-direita, de atacar a festa, o governo do estado e a prefeitura proibiram qualquer manifestação ou festa até a segunda-feira. Os partidos de oposição no plano federal (Verdes e Linke) protestaram, alegando o direito constitucional à livre manifestação. O deputado verde Cem Özdemir declarou no rádio que iria a Heidenau no fim de semana e conclamou todos os que quisessem a segui-lo.

Do outro lado do Atlântico, o pré-candidato republicano Donald Trump afirmou que, se eleito, deportará dos EUA todos os imigrantes ilegais. Um jornalista perguntou como ele faria isto, uma vez que o número de “ilegais” chega a 11 milhões. Ele respondeu que tem muitas qualidades como “manager”, e que o processo de deportação seria “tranquilo” e “humanitário”. O último grande processo de deportação massiva nos EUA ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando 110 mil japoneses e descendentes foram confinados em campos de concentração dentro do pais, num processo que provocou traumas ainda vivos.

(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Os-migrantes-e-a-tragedia-do-seculo/6/34355)

sábado, 29 de agosto de 2015

O fracasso da República Nova

por Alberto Dines

Não será fácil nem rápido: na busca da verdade alcançamos, enfim, a esfera da consciência. Com as delações premiadas, o circulo vicioso chegou à derradeira etapa e, agora, diante da eminência de uma catástrofe, a opção é convertê-lo em ciclo virtuoso.

Hora de reconhecer erros e confessar enganos. Bater no peito, Penitenciar-se.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu o sinal ao pedir à presidente Dilma que admitisse os equívocos ou renunciasse. A presidente soube captar a mensagem iniciando um rosário de pequenas e surpreendentes autocríticas. FHC foi adiante e na última terça, num encontro com empresários em São Paulo proclamou com todas as letras: “o sistema político brasileiro fracassou e somos todos responsáveis.”
A singela confissão e ao mesmo tempo a mais dramática constatação do fracasso da República Nova não tocou nas almas, ninguém se tocou. Publicada apenas no “Globo” não ressoou como deveria, mas na beira do abismo, aguçam-se os ouvidos. Na quinta-feira, o senador José Serra (PSDB-SP) publicou no “Estadão” um texto que pode ser entendido como complemento natural à sugestão de expiação coletiva proposta por FHC.

Animada profissão de fé parlamentarista, acompanhada por uma detalhada rememoração do seu torpedeamento na Constituinte pelos ambiciosos presidencialistas José Sarney, Leonel Brizola, Marcos Maciel e Orestes Quércia, o artigo contém hábil saída para minimizar os efeitos do terremoto provocado pela Operação Lava Jato: ao contrário do imediatismo e precariedade da experiência parlamentarista anterior (1961), o sistema só passaria a funcionar a partir de 2018. As investigações prosseguem, os culpados são punidos, mas estanca-se a crise institucional. Evitam-se traumas e, sobretudo, elimina-se para sempre a perigosa fermentação entre eventuais vencidos e vencedores. O fracasso foi de todos e todos começarão o novo sistema em pé de igualdade.

Apesar do irreversível desgaste da sua imagem, a José Sarney deve ser creditado o mérito de ter inaugurado, dias depois do segundo turno de 2014, a salutar opção confessional, pró-arrependimentos e remordimentos, através de um sonoro mea-culpa publicado na Página Três da “Folha”. Jamais deveria ter retornado à arena política depois de exercer a presidência, reconheceu. Ao mesmo tempo oferecia à presidente reeleita a magna tarefa de preparar o país para um maduro retorno ao parlamentarismo no decorrer do seu novo mandato.

Ninguém o leu, nem o levou a sério — esta talvez seja a verdadeira crise da nossa imprensa: só manchetes são lidas e percebidas. A Operação Lava Jato já estava em curso, ninguém poderia prever seus incríveis desdobramentos, mas a experimentada raposa política tão próxima do banquete pressentia aquilo que FHC identificou um semestre depois: o naufrágio do atual sistema político.

Hora de encerrar o perigoso jogo de exclusões chamado “Nós e os outros”.

(fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/lava-jato/o-fracasso-da-republica-nova/)

Entre a política e o dinheiro: O dilema do Grupo Globo

 por Sérgio da Motta e Albuquerque

O Grupo Globo cresceu 15% em 2014, tornando-se o 17º maior proprietário de mídias do mundo (já mencionei o fato na edição 863 deste Observatório). É o terceiro que mais cresceu no ano passado, atrás apenas do Facebook (63%), e do Baydu, da China (43%). O Google é o número um e em toda a Europa só há um grupo (o alemão Bertelsmann) maior que o conglomerado brasileiro. O grupo germânico é o sexto maior do mundo, apontou a pesquisa da agência especializada em gastos em marketing ZenithOptmedia (11/4). A metodologia do estudo baseou-se nas receitas consolidadas de mídias apuradas em diferentes meios de comunicação dos maiores grupos do planeta.

O maior limite para o conglomerado brasileiro continuar a crescer, apontou o estudo, é a economia nacional, abalada por escândalos políticos que alimentam e contribuem para a perpetuação da estagnação econômica e desacreditam o país diante de muitos analistas de risco em investimentos internacionais.

O Grupo Globo martelou sem dó a atual administração do país e agora enfrenta um dilema: se continuar a colaboração na alimentação da atual crise política nacional, seu futuro crescimento vai ficar comprometido nos próximos anos. Em outras palavras, não interessa à Globo apostar no declínio da economia brasileira. O fracasso previsto em seus jornais para a economia deste país é o pior cenário possível para os proprietários do grupo: aos Marinhos não interessa a derrubada de um presidente eleito e o caos econômico que seguirá, com certeza, uma possível deposição da atual governante.

A Globo é um colosso em receitas. Ganhou três posições desde a última pesquisa da agência americana ano passado: passou da 20ª  para a 17ª posição entre as maiores empresas proprietárias de mídias do planeta. Seus executivos não gostam de perder posição no mercado e dinheiro. O colosso brasileiro da mídia precisa apostar na volta do crescimento da economia e da manutenção do poder de compra dos consumidores brasileiros, no caso os leitores, internautas, espectadores e assinantes dos serviços que alimentam as receitas e os lucros do grupo. Por outro lado, o conglomerado não pode ser parceiro no retorno ao crescimento do país na atual administração, sem decepcionar seu público e correr o risco de perder audiência, renda e lucros. Dilema, dilema.


Oposição continua firme, mas os termos mudaram

O grupo (e seu carro-chefe, a TV Globo) tem o hábito de aplaudir a queda da economia que o ajudou a crescer e estar hoje entre as 30 maiores proprietárias de mídia do planeta. Na frente da BBC, da ITV inglesa, da Microsoft (quem diria?), do Yahoo e da Hearst Corporation, dos Estados Unidos. O gigante da mídia brasileira vai continuar a depender do governo brasileiro (qualquer que seja ele), para manter o padrão de aquisição do trabalhador que consome os produtos do grupo.

O mercado financeiro internacionalizado quer o oposto: a baixa da média do salário do trabalhador brasileiro, que despencou com a apreciação do dólar. Se a coisa piora, o conglomerado vai perder posição entre os maiores do planeta. E dinheiro, sobretudo. Posso estar enganado, mas já notei na GloboNews uma mudança no tom de suas críticas contra o atual governo. A oposição continua firme, mas seus termos mudaram: do deboche desapiedado passou-se a uma postura mais digna e quase mais tolerante. Quase, eu disse.

O Grupo Globo é uma entidade econômica madura e poderosa. Se continuar a apostar no declínio da economia nacional nos próximos anos com a mesma força que fez crescer sua receita no ano passado, vai incentivar seu próprio declínio. Não vai ter forças para manter o crescimento. E entre a coerência política e o dinheiro, a História ensina que os grandes grupos de comunicação sempre preferem o dinheiro.
***
Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em planejamento urbano, consultor e tradutor.

(fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/monitor-da-imprensa/entre-a-politica-e-o-dinheiro/)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Krugman: políticas atuais agravarão a crise

Não culpe a China por novos terremotos financeiros. Fragilidade da economia global tem causas profundas. Resposta convencional – cortar gastos públicos e elevar juros – é a pior possível
Por Paul Krugman | Tradução: Antonio Martins
Que está causando as quedas abruptas das bolsas de valores? O que elas significam para o futuro? Ninguém tem muitas respostas.
Tentativas de explicar as oscilações diárias nos mercados são normalmente insanas: uma pesquisa em tempo real sobre o crash de 1987 da bolsa de Nova York não encontrou evidência alguma para nenhuma das explicações que os economistas e jornalistas ofereceram para o fato. Descobriram, ao invés disso, que as pessoas estavam vendendo ações porque – você adivinhou! – os preços caíam. E o mercado de ações é um péssimo guia sobre o futuro da economia. Paul Samuelson brincou, certa vez, que os mercados haviam previsto nove das cinco recessões anteriores, e nada havia mudado a este respeito…
De qualquer forma, os investidores estão claramente nervosos – e têm boas razões para isso. Nos EUA, as notícias econômicas mais recentes são boas (ainda que não ótimas), mas o mundo como um todo parece muito propenso a acidentes. Há sete anos, vivemos numa economia global que tropeça de crise em crise. Cada vez que uma parte do mundo finalmente parece colocar-se em pé, outra despenca.
Mas por que a economia mundial continua capengando?
Na superfície, parece uma sucessão incomum de azares. Primeiro, o estouro da bolha imobiliária e a crise bancária desencadeada em consequência. Então, quando o pior parecia haver passado, a Europa mergulhou numa crise de dívidas e numa recessão em dois mergulhos. A Europa ao fim alcançou uma estabilidade precária e começou a crescer de novo – mas agora, assistimos a grandes problemas na China e em outros mercados emergentes, que haviam sido pilares de força.
Contudo, não se trata de acidentes sem relação entre si. Estamos, na verdade, vivendo o que sempre ocorre quando muito dinheiro está em busca de poucas oportunidades de investimento
Mais de uma década atrás, Ben Bernanke, então o presidente do banco central dos EUA (FED), argumento que a disparada do déficit comercial norte-americano não era o resultado de fatores domésticos, mas de uma “abundância global de poupança”. Um volume de poupança muito maior que o de investimentos – na China e em outras nações em desenvolvimento, provocado em parte pelas políticas adotadas em reação à crise asiática dos anos 1990 – estava deslocando-se para os EUA, em busca de lucros. Ele alertou levemente para o fato de que o capital que entrava não estava sendo canalizado para investimentos produtivos, mas para imóveis. É claro que o alerta deveria ter sido muito mais forte (alguns de nós o fizemos). Mas a sugestão de que o boom imobiliário dos EUA era em parte causado por fraqueza em economias de outros países permanece válido.
É claro que o boom converteu-se numa bolha, que provocou enorme estrago ao estourar. E não foi o fim da história. Houve também uma inundação de capitais, da Alemanha e outros países do norte da Europa, para a Espanha, Portugal e Grécia. Isso também provocou a formação de uma bolha, cujo estouro, em 2009-2010 precipitou a crise do euro.
E ainda não acabou. Quando os EUA e a Europa deixaram de ser destinos atraentes para o capital [devido à redução das taxas de juro a quase zero], a abundância global saiu em busca de novas bolhas a inflar, levando moedas como o real brasileiro a altas insustentáveis. Não poderia durar e agora estamos em meio a uma crise de mercados emergentes que faz alguns observadores lembrarem-se da Ásia nos anos 1990 – lembre-se, onde tudo começou.
Portanto, para onde o fluxo cambiante da abundância aponta agora? Talvez, de novo para os EUA, onde um novo fluxo de capitais externos provoca a alta do dólar e pode tornar a indústria novamente não-competitiva.
O que provoca a abundância global? Provavelmente, uma soma de fatores. O crescimento populacional está arrefecendo em todo o mundo e, apesar de toda a fanfarra com as últimas tecnologias, elas não parecem criar nem um grande aumento de produtividade, nem demanda para investimentos. A ideologia da austeridade, que conduziu a um enfraquecimento sem precedentes dos gastos públicos, ampliou o problema. E a inflação baixa, em todo mundo, que significa taxas de juros baixas, mesmo quando as economias estão crescendo aceleradamente, reduziu o espaço para cortar estas taxas, quando as economias se contraem. Qualquer que seja o mix preciso das causas, o importante agora é que os governos assumam seriamente a possibilidade – eu diria probabilidade – de que excesso de poupança e fraqueza econômica global tenha se tornado a nova normalidade.
Minha percepção é de que há, hoje, uma profunda falta de vontade política, mesmo entre governantes sofisticados, para aceitar esta realidade. Em parte, é devido a interesses especiais: Wall Street e os mercados não gostam de ouvir que um mundo instável requer regulação financeira, e os políticos que desejam matar o estado de bem-estar social não querem ouvir que os gastos governamentais não são um problema, no cenário atual.
Mas há também, estou convencido, uma espécie de preconceito emocional contra a própria noção de abundância global. Políticos e tecnocratas gostam de se enxergar como pessoas sérias, que tomam decisões difíceis – como cortar programas populares e elevar taxas de juros. Eles não querem ser informados de que estamos num mundo em que políticas aparentemente rigorosas irão tornar as coisas piores. Mas nós estamos, e elas vão.
(fonte: http://outraspalavras.net/capa/krugman-politicas-atuais-aprofundarao-a-crise/)

A louca lógica do capitalismo de vigilância

Vigiar internautas, para conhecer seus desejos mais profundos, tornou-se essencial para lucros do Facebook, Google e outras plataformas. Por isso é tão importante examiná-las
Por Rafael Evangelista
Em julho, fui convidado para uma mesa sobre direitos humanos e internet no Fórum da Internet, realizado pelo Comitê Gestor (CGI). Na ocasião defendi, entre outros pontos, que os grandes negócios da internet de hoje se baseiam em vigilância e, no limite, em uma violação cotidiana da privacidade dos usuários das diversas plataformas. Na mesa estava também um representante do Google, que rechaçou a afirmação, apontando que, tecnicamente, juridicamente, não se tratava de violação de privacidade, pois todos aceitamos termos de uso que autorizam as empresas a coletar dados.
Parte da audiência protestou, não reconhecendo esse caráter “voluntário” da adesão aos termos de uso. São longos, complexos, abusivos e feitos para não serem lidos. Usar ou não usar essas plataformas está longe de ser uma escolha livre das pessoas, somos levados a aceitar os termos não porque concordamos com eles, mas porque estar fora de muitas dessas redes sociais e plataformas da internet em parte significa isolar-se socialmente e mesmo profissionalmente.
Mas, para além dos termos de uso, esse debate nos permite discutir aspectos importantes do mercado atual de internet, mostrando como os dados trocados entre as pessoas na rede são o combustível que alimenta o motor de lucro das grandes empresas.
É lugar comum nos cursos de comunicação o professor perguntar aos alunos, logo quando ingressam, qual é o real produto vendido pelo jornal. Com misto de incredulidade e surpresa, ouvem que a mercadoria ali não é a notícia, mas o leitor. É ele, a mirada de seus olhos no papel, que será vendida ao anunciante. Da mesma forma, é a atenção de milhões de pessoas presas à tela da tevê que vai justificar os milhares de reais pagos pelos vendedores de produtos às emissoras que exploram o espectro eletromagnético e fazem televisão.
Até aí, sem muita novidade, na internet isso também acontece. “No Facebook o produto é você” é uma frase popular e igualmente verdadeira: quanto mais usuários na rede social, mais valor de mercado ganha a empresa. É aspecto da economia dos sistemas de informação, a escassez de atenção que se dá pelo excesso de produção informativa. Nosso tempo consumindo mídia se tornou um bem escasso, já que há tanta produção de mídia por aí.
Prender a atenção das pessoas é algo crucial e essa é uma das razões que fazem as redes sociais viverem mexendo nos algoritmos que determinam o que vemos e o que não vemos nos nossos feeds, nas nossas linhas do tempo. Num polêmico estudo, o Facebook alterou os posts que seriam vistos normalmente pelos usuários, para testar como variaria seu humor. “Para nós, é importante o impacto emocional do Facebook nas pessoas que o usam, por isso fizemos o estudo. Sentíamos que era importante avaliar se ver conteúdo positivo dos amigos os fazia continuar dentro, ou se o fato de que o que se contava era negativo os convidada a não visitar o Facebook. Não queríamos irritar ninguém”, escreveu um dos coautores do estudo
Ter contato com algo muito contrário ao que acreditamos nos causa cansaço, repulsa; algo muito semelhante à nossa opinião nos dá tédio, é repetição. Como um cassino que quer prender os jogadores o máximo de tempo em frente aos caça-níqueis, as redes querem os usuários deslizando os dedos na tela, buscando por incessantes novidades de seus “amigos”.
Contudo, a elogiada interatividade da internet, a troca em mão dupla das informações na rede, dá novas características a essa relação comercial da economia da atenção. Além de receberem informações, os usuários também as enviam, mesmo involuntariamente, e isso é incorporado pelas empresas numa espiral de valorização que vai além dos mecanismos tradicionais. Seus próprios dados de usuário não têm valor comercial para quem os produz, mas ao serem circulados pelas empresas tornam-se um produto com valor de mercado ou um insumo ao aprimoramento da publicidade. Ninguém em sã consciência pensaria em cobrar por um post no Facebook, ou pela visualização de uma foto no Instagram ou por uma piadinha no Twitter. Para o amigo que vê aquilo tem valor de uso, informa ou diverte. Mas, se o produtor tentasse cobrar por isso dificilmente encontraria compradores.  Já dados de navegação, lista de amigos, buscas na internet são de valor ainda menos evidente e impossíveis de serem colocados no mercado, por seus próprios produtores, em unidades comercializáveis. Porém, quando organizadas em grandes conjuntos, pelas plataformas que se tornam legalmente proprietárias dos dados que doamos ao assinarmos os famigerados termos de uso, essas informações viram algo muito bem pago.
Recentemente, o Facebook obteve direitos comerciais exclusivos sobre a maneira como os usuário estão conectados em uma rede. Basicamente, patenteou a possibilidade de uso comercial das listas de amigos. Uma das aplicações imediatas, registrada na patente, é o digital redlining, a prática de usar a informação sobre quem são seus amigos para conceder ou negar crédito. Como o Facebook não está no ramo de emprestar dinheiro, supõe-se que ele vá vender esse serviço a bancos, ou seja, lucrará com a informação sobre quem são os nossos amigos na rede.
Quando acusadas, durante o caso Snowden, de coletarem dados pessoais de seus usuários, os mesmos que acabaram sendo utilizados pela NSA, as empresas defenderam-se afirmando a anonimização, o que quer dizer que elas retirariam a ligação entre o dado de identificação e os dados produzidos pelos usuários. Porém, anonimizados ou não, os dados, manipulados como metadados (dados sobre dados), são úteis para tornarem a publicidade mais direcionada e efetiva e, por isso, com maior valor de mercado. Não apenas o fato de alguém marcar o seu time do coração com um like, ou dizer que assistiu o filme x ou y é algo incorporado, mas os comentários sobre a mais recente vitória do Palmeiras ou a menção feita a um amigo sobre o último show visto ajudam a melhorar a precisão da publicidade, que agora é individualizada. Tudo o que se faz ou diz nas redes, toda produção ou exibição de gosto pessoal, acaba servindo ao marketing ou à valorização de bens vendidos no mercado.
O mesmo vale para a navegação rastreada por cookies, aquelas pistas que vamos deixando dos sites acessados e que se tornam informação usada para direcionar a publicidade. Esta em geral nem será vista ali, por onde se passou, mas no site de um terceiro.
Ao ser lançado, o hoje hegemônico Gmail causou um certo incômodo público, já que seu modelo de negócio, a maneira escolhida para financiar o então inédito espaço de armazenamento oferecido ao usuário, passa por um bisbilhotar ativo do que se escrevem na mensagem. Ainda que por um robô, toda comunicação trocada via Gmail é lida e informa os bancos de dados do Google. A princípio, isso é utilizado para mostrar uma publicidade direcionada ao próprio usuário, mas nada impede que seja também usada como um termômetro do mercado. Pode servir para antecipar a produção de algum produto, cuja demanda potencial foi medida e estaria prestes a aumentar. Ou até mesmo orientar a compra de ações da empresa responsável por essa produção.
O usuário não precisa nem apertar da tecla “enter” de seu computador para ter a informação processada, como mostram as sugestões de complemento para as buscas feitas automaticamente pelo Google Search. O mesmo vale para textos no Facebook, que já usou a autocensura dos usuários, aquilo que eles escrevem mas acabam não enviando, como objeto de estudo. Seja em pesquisas, seja em melhoramento direto e automatizado do mecanismo de busca, essas entradas de dados dos usuários servem para melhorar – e valorizar comercialmente – as plataformas de busca e sociais.
Google, Facebook, Twitter e outros não produzem conteúdo, apenas intermediam trocas comunicativas e operam seleções personalizadas sobre o que é trocado. O objetivo é reter a atenção e, ao mesmo tempo, estimular mais produção de comunicação entre os usuários, que entretêm a si mesmos, seja com produção criativa própria, seja com seleção de material jornalístico, informativo, artístico ou de entretenimento encontrado na web pelas próprias pessoas.
O lucro, por sua vez, não está somente na intermediação, mas em um conjunto de práticas de rastreio, vigilância, armazenamento, processamento e apropriação privada de dados. São elas que permitem o melhoramento dos serviços das plataformas e a constituição de novos produtos informacionais, que servem a todo um conjunto de atores do mercado capitalista.
As empresas de tecnologia da informação estão hoje entre as maiores do mundo, junto com bancos e empresas de petróleo, e se sobressaem por sua lucratividade aliada ao baixo uso de mão de obra. Entender melhor a natureza do enriquecimento dessas empresas, buscando destrinchar no que se baseia esse crescimento é vital para enfrentar em lutas concretas as desigualdades que o capitalismo produz.

Veja também

Vieira, Miguel Said and Evangelista, Rafael de Almeida, A máquina de exploração mercantil da privacidade e suas conexões sociais (The Mercantile Privacy-Exploiting Machine and Its Social Connections) (May 12, 2015). 3rd International LAVITS Symposium, Rio de Janeiro, 2015. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=2608251or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2608251
(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/a-louca-logica-do-capitalismo-de-vigilancia/)

Café História desta semana

[1] Mural:
 o lugar do historiador
A VII Semana de História da Uiversidade de Pernambuco, Campus Garanhuns, tem como tema "O lugar social do Historiador: aproximações locais". E mais: A Revista de História da Biblioteca Nacional de agosto traz um especial sobre a conquista de Ceuta por Portugal. A tomada da cidade africana, que completa 600 anos esse mês, transformou-se em evento inaugural dos grandes descobrimentos e do expansionismo português. [Leia]
[2] Livros: 
Do Império Otomano ao Terceiro Reich
Em nossas dicas e lançamentos literários de agosto, preparamos três livros bem especiais na última semana, que vão desde a história do Império Otomano até a queda do Terceiro Reich, passando pelo Brasil nos Oitocentos. [Confira]
[3] Notícia:
 O Estado Islâmico e o patrimônio histórico
Os terroristas do Estado Islâmico voltaram a destruir um patrimônio da humanidade. Desta vez, foi um templo romano, numa cidade síria que eles invadiram em maio.O que o vídeo mostra não existe mais. Ainda não há imagens da destruição, mas autoridades sírias confirmaram que os terroristas do Estado Islâmico explodiram o templo de Baalshamin, que tinha quase dois mil anos. Um tesouro histórico. [Leia mais]
[4] Acadêmico:
 Trabalhos acadêmicos
Estão abertas até 25/09 as inscrições para a 6.a edição do Curso de Extensão Oficina de Produção de Trabalhos Acadêmicos oferecido pela PUCRS. Trata-se de um curso 100% EAD, de 60 h/a[Leia mais]
[5] Fórum:
 Feudalismo nos países escandinavos 
Houve feudalismo nos países escandinavos? Este é o tópico de fórum que destacamos esta semana. [Clique aqui]

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Um mundo sem utopias

Por Jaime Pinsky


O processo civilizatório se desenvolve desde que existe o ser humano. A descoberta do fogo, a invenção da roda, a domesticação de animais, a elaboração de deuses, a estruturação das cidades foram marcos na história da humanidade.

Mas, depois da fala, dificilmente encontraremos fatores civilizatórios mais importantes do que a criação, a racionalização e a universalização da palavra escrita. Por meio dela, o homem se tornou capaz não apenas de produzir cultura como de guardá-la de modo eficiente e de, mais ainda, transmiti-la aos contemporâneos e às gerações seguintes.

Com a escrita tornava-se mais fácil apresentar descobertas, descrever invenções, divulgar técnicas, expor ideias, confessar fraquezas, compartilhar sentimentos.

Praticada, inicialmente, apenas por elites a escrita espalhava com muita parcimônia o saber acumulado, uma vez que o conservadorismo dos detentores do poder bloqueava a democratização dos avanços na cultura material e imaterial.

Com os papiros e pergaminhos, inicialmente, e mais tarde com o papel e, mais ainda, com a imprensa de tipos móveis, a cultura, no sentido de patrimônio acumulado, passou a alcançar um número cada vez maior de pessoas, democratizando o saber e dando oportunidades a uma parcela importante da população. Sem a palavra escrita, em geral, e sem o livro, em particular, a história não teria sido a mesma.

Ao longo do século 19, nos países mais desenvolvidos, as pessoas foram aprendendo a ler e a escrever. A desvalorização do trabalho braçal, substituído por máquinas, o crescimento do setor de serviços, o aumento da produtividade no campo, o crescimento das cidades: o mundo parecia caminhar para uma realidade sonhada pelos utopistas.

Ao ler livros, ao escrever cartas, ao redigir o resultado de reflexões complexas, os cidadãos compartilhavam ideias e sentimentos, tão mais densos quanto mais habilitados estivessem nas técnicas da escrita e da leitura. Era permitido sonhar com uma sociedade universal de gente alfabetizada com oportunidades de ascensão social determinadas apenas pelos seus méritos. Não por acaso é o momento das grandes utopias igualitárias.

Já no século 21 as utopias parecem coisas de um passado remoto. Mesmo não gostando do mundo como está, parece que desistimos de mudá-lo. Vivemos ou em sociedades consumistas, ou burocráticas, ou fundamentalistas. Fingimos que a felicidade pode ser encontrada comprando mercadorias, obedecendo regras, ou acreditando em um improvável mundo pós-morte.

Jogamos no lixo milhares de anos de avanço civilizatório e nos transformamos em meros consumidores de softwares. Estamos perdendo a habilidade de ler textos complexos, nos conformamos com a pobreza da linguagem das redes sociais.

Em nome da interatividade sentimo-nos qualificados a ser banais. Sem leituras sérias abdicamos do patrimônio cultural da humanidade, arduamente construído ao longo de milênios.

Não precisamos sequer de um Grande Irmão para ordenar a queima de livros: queimamos nossas estantes, por inúteis. E nem as substituímos por livros digitais, já que vamos deixar o saber apenas para os criadores de software.

Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros

(enviado pelo autor, publicado na Folha de São Paulo)

Ensaio sobre o cemitério do Bonfim e a imortalidade

por Cristina Castro
Recebi o texto abaixo do leitor Régis Clemente Quintão, de 26 anos, belo-horizontino que estuda mestrado em história pela UFMG. Achei muito interessantes as informações que ele trouxe sobre um dos mais tradicionais cemitérios de Belo Horizonte -- que é um verdadeiro "museu a céu aberto". Nunca parei pra pensar sobre o tanto de coisas interessantes que podem ser contadas a partir da história de um cemitério... Me lembrou uma reportagem que fiz, tempos atrás, em outro cemitério histórico, este em São Paulo.
Espero que gostem do texto do Régis também! Boa leitura:
Foto: PBH / Divulgação
Foto: PBH / Divulgação
"Inaugurado há 116 anos, o Cemitério do Bonfim de Belo Horizonte é, hoje, um verdadeiro “museu a céu aberto”. Suas obras arquitetônicas e artísticas são verdadeiros monumentos. Monumentos que, desde a Antiguidade, têm um “sentido funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte”, afirmou o famoso historiador francês Le Goff.
Assim, pode-se notar que o ser humano, além de render culto aos seus mortos, deseja imortalizar, por meio do monumento e da memória, aquele ser que não está mais entre o mundo dos vivos. É interessante observar que esse anseio, respeitante à morte e ao morrer, torna-se patente a partir do século XIX. Não por acaso, o Cemitério do Bonfim fora construído em fins dos Oitocentos.
O século XIX foi considerado o século do culto aos mortos. A morte, a sepultura, o destino da alma, a relação entre os vivos e os mortos eram questões das quais muito se falavam. Nesse contexto, com o desenvolvimento da ciência, da medicalização e das medidas sanitárias, as relações do homem diante da morte tiveram de mudar. Os sepultamentos, que até então eram feitos nas igrejas ou nas suas adjacências, passaram a serem feitos em cemitérios fora do perímetro urbano. E essas questões e mudanças também refletiriam na cidade de Belo Horizonte, que estava sendo construída na última década do sobredito século.
No caso de Belo Horizonte, com a proibição das inumações no adro da Matriz da Boa Viagem, construiu-se um cemitério provisório, em 1894, que se localizava no que hoje corresponde ao cruzamento das ruas Rio de Janeiro, Tupis, Tamoios e São Paulo. E nele se fizeram os enterros até que o cemitério definitivo estivesse pronto. Não demorou muito: o Cemitério Nosso Senhor do Bonfim foi inaugurado no dia 8 de fevereiro de 1897, construído num local conhecido com alto dos “Menezes”, fora do limite urbano e de acordo com as tendências higienistas da época.
Projetado e construído pelos técnicos e engenheiros da Comissão Construtora da Nova Capital, ocupando uma área de aproximadamente 170.036 metros quadrados, o traçado do cemitério combina “com o traçado em tabuleiro de xadrez da capital mineira”, escreveu Marcelina Almeida, que faz visitas guiadas no “campo santo”. E não é somente o traçado que se repetia: as 54 quadras dispostas em alamedas e ruas também reproduziam as hierarquias sociais da cidade. A representação das desigualdades revela-se perante aos grandes e suntuosos túmulos que costumam ficar nas principais quadras, enquanto os túmulos mais simples, de pessoas pobres, ficam nas ruas secundárias e nos limites do cemitério, junto aos muros. É um cemitério que, pode-se dizer, identifica e distingue seus “moradores”.
PBH / Divulgação
PBH / Divulgação
Atualmente, os jazigos monumentais do Cemitério do Bonfim são considerados verdadeiras obras de arte. São obras de arte que têm um sentido: a busca da imortalidade terrena. A esse respeito o historiador português Fernando Catroga nos diz que os cemitérios oitocentistas “acentuaram a monumentalidade funerária ao enfatizarem a memória como um segundo imortalizador”. Desse modo, a monumentalidade, que é muito presente no Cemitério do Bonfim, principalmente nos túmulos de personalidades e de ilustres políticos como Raul Soares e Olegário Maciel, tem esse sentido de memorar e, de certa forma, de imortalizar o falecido.
O surgimento dessa nova afetividade com relação aos mortos está ligado ao que Catroga chamou de o “aumento da incerteza na imortalidade transcendente”, ou seja, na descrença escatológica, que faz com que a atitude do homem mude frente à morte. Com isso, este homem passa a buscar uma imortalidade terrena, materializada nos jazigos, mausoléus, estátuas, fotografias e nas lápides poéticas, que têm um objetivo, por assim dizer, terapêutico, visando, por meio da memória e dos monumentos, superar a perda e imortalizar o ente querido. E, como um alguém que mora longe, vamos ao cemitério visitá-lo.
Sobre a construção de uma “segunda casa”, pode-se ler em Hannah Arendt que os mortais sempre se preocuparam em produzir coisas, sejam obras, feitos ou palavras, que mereciam pertencer à eternidade, de sorte que “os mortais possam encontrar o seu lugar num cosmo onde tudo é imortal, exceto eles próprios”. E seria assim que os homens deixariam seus vestígios “imorredouros”, demonstrando, dessa forma, sua imortalidade, sua natureza divina.
Nesse sentido, a construção de uma “segunda casa” no cemitério pode ser entendida como apenas uma das facetas do ser humano no que diz respeito à produção de obras e feitos. Contudo, Arendt afirma que depois da “queda” do Império Romano ficou claro que nenhuma obra feita por mortais poderia ser imortal. Além disso, com o advento do evangelho cristão, o qual se pautava na eternidade individual, tornou-se “fútil e desnecessária qualquer busca de imortalidade terrena”. Ao contrário do que afirmou a autora, pode-se notar, pelo menos no Cemitério do Bonfim, que a procura da imortalidade ainda está no centro da vita activa, e os túmulos suntuosos não são outra coisa senão essa busca pela imortalidade terrena.
Assim, o Cemitério do Bonfim de Belo Horizonte que quando da sua inauguração representava os anseios modernizantes da cidade e as medidas higienistas da época, tornou-se, como o passar dos anos, um lugar de memória, principalmente em função dos admiráveis túmulos, que visam imortalizar o finado, de modo a apaziguar sua angústia diante do reconhecimento da finitude humana e do insondável desconhecido."
(fonte: blog da Kika Castro)

sábado, 22 de agosto de 2015

A viralização do senso comum

por Michel Carvalho da Silva

Quem já recebeu alguma mensagem via whatsapp informando que o governo vai confiscar a caderneta de poupança ou que o Congresso vai votar um projeto que acaba com o 13º salário? Outro conteúdo falso que “viralizou” no Facebook nos últimos tempos se refere ao auxílio-reclusão, que seria pago diretamente ao criminoso, ou ainda que o benefício se multiplicava conforme o número de filhos do preso ou da presa.
Muitas mensagens circulam pela internet e nem sempre elas são verdadeiras. Mas como pode o cidadão comum distinguir, num volume pulverizado de informação, entre aquela confiável, verídica e relevante, e aquela errônea, imprecisa e falsa? É evidente que essa questão está relacionada ao nível de empoderamento do indivíduo, que varia de acordo com o grau de instrução, a consciência política e os hábitos midiáticos de cada um.
Uma pesquisa divulgada recentemente pelo Pew Research Center mostra que cresceu nos últimos dois anos a influência das redes sociais na tarefa de manter os cidadãos informados. Os sites de notícias, antes tradicionais fontes de informação, foram descritos no estudo como fontes secundárias na hora de saber sobre um assunto ou acontecimento.
As redes sociais podem impulsionar o engajamento cívico devido à sua flexibilidade ao permitir aos usuários acessar informações sob demanda, receber notícias de maneira instantânea, aprender sobre diversos temas, personalizar conteúdo de acordo com seus interesses e aprofundar a discussão em torno de assuntos mais complexos.
Acesso à informação é um direito
No entanto, o potencial da internet para ampliar o grau de informação do indivíduo ainda é limitado por fatores como o desinteresse da coletividade ou a inabilidade das pessoas em assimilar grandes volumes de dados e relacionar fatos. Daí a importância de uma educação que subsidie o cidadão a entender a burocracia governamental e o funcionamento do sistema político (conhecimento das regras gerais, familiaridades com as estatísticas e as plataformas de governo). Só uma pessoa que reúna essas competências poderá acompanhar e fiscalizar as políticas públicas implementadas pelos agentes públicos.
A desinformação, fruto da imprecisão, da mentira ou do ruído informacional, contribui para a ignorância das pessoas e inviabiliza o debate democrático. Aliás, é preocupante quando observamos que uma informação é manipulada simplesmente com o propósito de causar pânico ou revolta com vistas a beneficiar um segmento político. Não podemos nos esquecer também do triste episódio, ocorrido no ano passado no Guarujá, em que uma mulher foi espancada até a morte após boato espalhado em rede social que a acusava de sequestro e bruxaria.
Diante disso, é preciso verificar se a informação veiculada é de uma fonte confiável, como sites institucionais, páginas de jornais conhecidos e blogues de profissionais respeitados. Também é importante pesquisar se mais de uma fonte publicou a notícia, isso denota maior credibilidade à mensagem. Outro aspecto relevante é identificar se o conteúdo divulgado não é oriundo de um site de notícias falsas ou de conteúdo exclusivamente humorístico, como o Sensacionalista.
A informação tem relevância para o exercício pleno da cidadania e a formação de opinião. Por isso, o acesso à informação é um direito que antecede os demais, pois quem está bem informado tem maiores possibilidades de reivindicar outros direitos. As redes sociais oferecem oportunidades significativas para a politização da sociedade e um maior engajamento do cidadão no processo de deliberação pública, mas é preciso, antes de tudo, discernimento para não reproduzir o senso comum “viralizado” na internet.
***
Michel Carvalho da Silva é jornalista, professor e mestre em Ciências da Comunicação
(fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/redes-sociais/a-viralizacao-do-senso-comum/)

Sobre ousadias: dos patifes e dos decentes

por Alberto Dines

No mesmo dia em que se confirmava a denúncia do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, contra Eduardo Cunha, o presidente da Câmara Federal, a ministra do STF Cármen Lúcia, declarou que o povo brasileiro sabe o que NÃO quer, porém “as pessoas boas” precisam expressar o que querem — com “a ousadia dos canalhas”.
Mineira legítima, a vice-presidente da nossa suprema corte, consegue ser veemente e arrasadora com a naturalidade de quem dá um bom-dia. Impedida de manifestar-se sobre um processo que ainda não examinou, tem sido capaz de oferecer aos vacilantes conceitos certeiros e opiniões inequívocas.
A verdade é que o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), é dono de um potencial de ousadias suficiente para transformar a grave crise de governança que atravessamos em impasse institucional. O rol de malfeitorias e as penas solicitadas pelo Ministério Público eram suficientemente fortes para que na denúncia constasse a necessidade de afastar de imediato o acusado da função que exerce.
O procurador Rodrigo Janot preferiu não confrontar o STF antecipando-se ao seu julgamento e, com isso — a contragosto, certamente — garantiu ao denunciado o cenário e a audiência para uma performance de, pelo menos, seis meses num gênero de farsa que o presidente da Câmara de Deputados domina como poucos.
Eduardo Cunha é ousado porque não lhe sobram alternativas. Joga perigosamente porque não conhece outro jogo. Arrisca-se porque não tem o que perder, tal é o seu nível de desapareço por si mesmo. Suas apostas raramente são as mais recomendáveis e os predicados, que o ajudaram a se projetar de forma tão surpreendente, são geralmente mencionados com discrição e/ou eufemismos. Para evitar incômodos e incompreensões.
Impróprio qualificá-lo como kamikaze (do japonês, “vento divino”,) porque aqueles pilotos suicidas nipônicos, celebrizados durante a 2ª Guerra Mundial, se imolavam com pretextos espirituais e místicos. Já o personagem que domina as manchetes nos últimos dias, picado pela ambição e fanatismo só pensa em si mesmo.
Como qualquer cidadão, Eduardo Cunha tem o direito de se defender bem como servir-se dos instrumentos do Estado de Direito para provar a sua inocência. Mas em seu benefício não pode usar o poder que a sociedade lhe conferiu para preservar apenas o interesse público.
Ao garantir que permanecerá na presidência da Câmara, Eduardo Cunha não percebe que está oferecendo prova cabal da sua onipotência e periculosidade. Quem é acusado de abusar do poder durante tanto tempo e através de tantos ilícitos não tem credibilidade para garantir doravante um comportamento isento, insuspeito e imparcial.
Eduardo Cunha não pode continuar no cargo. O país não pode ser submetido à vergonhosa situação de manter no primeiro escalão alguém tão comprometido com a delinquência.
É indecorosa e quase obscena, a ambiguidade da oposição oferecendo um suporte ao denunciado pela facilidade de que dispõe para acionar um processo de impeachment da presidente da República. O que se espera da oposição e especialmente do PSDB é outra espécie de ousadia: a da “gente boa”, os decentes e honrados.
E qual das ousadias preferirá a mídia ?
A ousadia dos pirómanos, apocalípticos, belicistas ou, ao contrário, optará pela prudência e responsabilidade? A mídia terá a audácia de apoiar os delinquentes, aferrados ao projeto de interromper o mandato da presidente Rousseff a qualquer preço ou vai se atrever a apoiar os deputados que pretendem libertar a Casa do Povo do caudilho ensandecido?
(fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/conjuntura-nacional/sobre-ousadias-dos-patifes-e-dos-decentes/)


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Agroecologia: os cães ladram e a caravana passa

por Najar Turbino

Trata-se de um provérbio árabe, um paradigma entre o estacionário e o evolutivo. Os cães podem latir para qualquer coisa, inclusive para destilar o ódio, como ocorre atualmente. A caravana moderna é uma marcha, pouco divulgada no país, mas que tem por trás, cinco milhões de pessoas atendidas pelas políticas públicas, em vigor desde 2003, no Semiárido brasileiro, uma região que congrega 25 milhões de pessoas e era totalmente abandonada. As 70 mil mulheres rurais, na sua grande maioria, agricultoras familiares, camponesas, pescadoras, marisqueiras ou extrativistas, que estiveram em Brasília deixaram um recado sutil, mas bastante claro:
 
“-Nós mulheres do semiárido brasileiro nos colocamos de pé e em luta pela garantia dos nossos direitos e a manutenção das conquistas obtidas no Brasil. Não podemos deixar de cobrar a continuidade e o investimento contínuo em políticas que mudaram as nossas vidas para melhor nos últimos 12 anos, a exemplo do Programa Água para Todos, Um Milhão de Cisternas e Uma Terra e Duas águas. Foi em função dessas ações que nos últimos quatro anos marcados pela seca mais severa dos últimos 80 anos, milhares de famílias e mais, milhares de mulheres puderam se manter com dignidade no campo e produzindo alimento”. Trecho da Carta entregue pelas Margaridas no dia 6 de agosto à presidenta Dilma Rousseff.
 
Programa Água para Todos ameaçado pelo ajuste fiscal
 
O problema é que o Programa Água para Todos- envolve 1,1 milhão de cisternas construídas- está ameaçado pelo ajuste fiscal, além disso, o Programa Uma Terra e Duas Águas era patrocinado pela Petrobras e também pelo BNDES. O contrato entre a Petrobras e a Articulação no Semiárido Brasileiro encerrou em junho de 2014, quando 20 mil tecnologias foram entregues num evento simbólico em Serrinha, na Bahia. Elas beneficiaram 100 mil famílias e foi executada por um conjunto de 65 organizações civis, articuladas na ASABRASIL, envolveram 600 técnicos e dois mil pedreiros. Trata-se de uma construtora? Nada disso, são agricultores (as) treinados na profissão e aprendem a construir a cisterna de produção – recolhe 52 mil litros -, e a água será usada no plantio e na criação de animais. Sem contar que todo o material usado é comprado na região.
 
O Brasil da caravana, das Margaridas, das marchas e da revolução silenciosa da agroecologia é o país do futuro, que dissemina o conhecimento das comunidades rurais, dos povos tradicionais, ensina a solidariedade, o intercâmbio entre assentados e agricultores familiares, tanto homens como mulheres, e também jovens, da produção de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos e livres de transgênicos, além de proteger a biodiversidade e o ambiente natural. Essa caravana, representada pela Articulação Nacional de Agroecologia realizou cinco seminários nacionais nos últimos meses, em todas as regiões brasileiras – RJ, São Luís, Mal. Cândido Rondon, Recife, Campo Grande e Viçosa- além de um nacional, para estabelecer as metas e as prioridades para o II Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, a ser executado entre 2016-2019.
 
Base social de milhões de pessoas no campo
 
O Brasil é o único país do mundo que tem um plano de governo, mais do que isso, uma política pública discutida e implantada em conjunto com a sociedade civil sobre a agroecologia e produção orgânica. A ANA coordena milhares de entidades, desde sindicatos, federações, associações, redes regionais e nos últimos anos implantou uma iniciativa inédita no campo: as caravanas agroecológicas. Ou seja, tanto a ANA como a ASA no semiárido, formam uma base social organizada de milhões de agricultores e agricultoras, assentados e assentadas, extrativistas, pescadores e pescadoras, marisqueiras, quebradeiras de coco e por aí vai. E todos os milhões de representados não querem saber de retrocesso na execução de políticas públicas que beneficiaram e mudaram a vida de brasileiros até então destinados a sofrer sem eira nem beira.
 
Muito pelo contrário, eles querem e vão continuar avançando. As propostas do II PLANAPO estão em um documento de 50 páginas e abrangem temas importantes como Terra e Território, reforma agrária, regularização fundiária, respeito aos territórios dos povos e comunidades tradicionais, adequação de normas do crédito rural, da vigilância sanitária, uso de bioinsumos, apoio à agricultura urbana e periurbana e, principalmente, o apoio à agroindustrialização familiar e artesanal, a formação de redes e a assistência técnica. Entre os dias 16 e 18 de setembro próximo, no Palácio do Planalto será realizado um seminário nacional convocado pela Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) para discutir com o governo as propostas, que serão encaminhadas à Presidência da República.
 
No semiárido 1,3% dos proprietários com 38% da terra
 
Um trecho de um artigo de Naidison Batista, da coordenação nacional da ASA, do livro “Convivência com o Semiárido Brasileiro”, editado em 2013, resultado de um projeto de cooperação entre Brasil e Espanha:
 
“- Nessa região terra e água sempre estiveram nas mãos de uma pequena elite, gerando níveis altíssimos de exclusão social e de degradação ambiental. Essa realidade atinge, em particular, cerca de 1,7 milhões de famílias agricultoras que vivem no semiárido brasileiro. Elas representam 42% de toda a agricultura familiar brasileira e ocupam apenas 4,2% das terras agriculturáveis. No semiárido 1,3% dos estabelecimentos rurais têm 38% das terras, e 47% dos estabelecimentos menores, em conjunto, 3% das terras. A concentração de terras está, indissociavelmente, ligada à concentração da água, representando os fatores determinantes da crise socioambiental e econômica vivida na região”.
 
Somente com uma profunda reestruturação fundiária pode se pensar na implantação de uma agricultura sustentável e democrática, com segurança e soberania alimentar, acrescenta ele. Essa é a trajetória do povo do semiárido nos últimos. Em 2013, quando participei da Caravana Agroecológica da Chapada do Apodi, convivi durante quatro dias com assentados (as) de diversas comunidades do nordeste e do norte de Minas. Discutíamos sobre o futuro, após as eleições de 2014, e o que aconteceria se o PSDB ganhasse o pleito. Um assentado do norte de Minas respondeu prontamente:
 
“- O povo não vai aceitar retrocesso, não vamos perder o que já conquistamos”.
 
Ele falava especificamente do avanço do PRONAF, dos Programas PAA e PNAE, que servem de canal de comercialização dos produtos dos assentamentos e da agricultura familiar, de modo geral. Mas agora, a caravana agroecológica quer muito mais: qualificar 1200 técnicos em crédito rural específico para assentados, agricultores familiares e extrativistas, um nó que não desamarra nunca. Não adianta liberar milhões de reais para investimento e custeio, ou para ser usado em outras áreas, se o (a) beneficado não consegue pisar dentro do banco. É expulso pela burocracia e por um funcionário que não entende o que acontece. Querem três mil projetos na área de agroindustrialização; qualificar cinco mil técnicos e 200 mil agricultores (as) extrativistas sobre os procedimentos necessários à regularização no âmbito da legislação de orgânicos; promover ATER específica para 15 mil mulheres; cadastrar 30 mil unidades de produção em conformidade com a regulamentação brasileira de produção orgânica e de base agroecológica.
 
Os aprendizes da ditadura midiática
 
Enfim, os movimentos sociais do campo, que trabalham com agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais e daqueles que vivem da sociobiodiversidade querem um Brasil produzindo alimentos de qualidade, gerando emprego e renda, de forma organizada, articulada, com conhecimento científico e assistência técnica, mas algo que dignifique o país, não apenas uma alternativa, um nicho de mercado. Estamos falando de comida que gera saúde, que economiza recursos do SUS, que diminui a procura por postos de saúde e hospitais. O Brasil tem a maior biodiversidade do mundo, portanto, tem que implantar, executar e divulgar aos quatro cantos do mundo que também tem o maior plano de produção orgânica e de base agroecológica do mundo, que servirá de modelo para outros povos. Isso é muito mais do que economia, é promover um país real, solidário, sem ódio, criativo, justo e multicultural em todos os aspectos. A classe média patrimonialista e os aprendizes da ditadura midiática continuarão rosnando, mas o povo que vive da terra, seja no semiárido, seja na Amazônia, ou no centro-sul, não vai se assustar e a caravana seguirá em frente, assim como diz o velho ditado árabe. 
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/Agroecologia-os-caes-ladram-e-a-caravana-passa/3/34268)