sábado, 5 de setembro de 2015

A tragédia dos refugiados - os silêncios da imprensa

Distorção eurocentrista no noticiário

por Ivan Bonfim

Uma das formas pelas quais a comunicação midiática – e, neste caso em específico, o jornalismo – pode ajudar nos avanços sociais se encontra na possibilidade de criação de empatia. A atitude de, idealmente, “colocar-se no lugar do outro” ao ser afetado por uma notícia é um dos mais nobres efeitos que a produção jornalística pode alcançar. Há verdadeiramente alguma chance de transformação da sociedade quando os problemas são tomados como gerais, não somente localizados.
Nas últimas semanas, chegou ao conhecimento dos brasileiros o drama de milhões de pessoas que buscam abrigo em países europeus. São refugiados de locais como Síria, Nigéria, Líbia e Iraque, entre vários outros, que depois de enfrentarem guerras civis (declaradas oficialmente ou não), perseguição e violência de todas as formas, decidem buscar a sobrevivência na Alemanha, Grã-Bretanha, Itália ou Espanha. Vão, em grande parte, com pouco mais que a roupa do corpo, e enfrentam obstáculos como a travessia do Mar Mediterrâneo em embarcações sem as mínimas condições de segurança. O intuito de sobrevivência, materializado no desembarque em território europeu, fala mais alto que o extremo risco da travessia. As notícias sobre a situação dramática desses refugiados em lugares de passagem como Calais (França) ou na estação metroviária de Budapeste (Hungria) só não são mais aterradoras do que as publicadas quase diariamente sobre as centenas de mortos em naufrágios nas costas italiana, grega ou espanhola.
Pois bem: no dia 31 de agosto último, em uma matéria veiculada no Bom Dia, Brasil (TV Globo) sobre o desespero daqueles que tentam recomeçar suas vidas a milhares de quilômetros de casa, a apresentadora afirmou que a crise humanitária, e aqui cito literalmente, “pode ser uma ótima oportunidade para os empresários europeus”. Em seguida, o jornalismo de “boas notícias” analisa a possibilidade de exploração de pessoas em situação de abandono a partir da contratação destas mesmas para trabalhos de baixa remuneração.
A miséria humana se torna portadora de “oportunidades”
É necessário perguntar: o que essas poucas frases expõem sobre nosso ofício? Ou pior: qual a lógica que sustenta a ideia de que, por qualquer motivo, a calamidade que se abate sobre milhões de pessoas possa representar algo positivo para outro grupo? A falta de elementos de identificação com os indivíduos em situação de risco – e, paradoxalmente, a empatia com a “causa” dos empresários europeus – são indicativos do que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos definiu como pensamento abissal: apenas aquilo que representa ou é abarcado pela estrutura de identificação com o Ocidente é considerado “humano”; o que fica do lado de lá (africanos, muçulmanos, árabes e outros grupos que não sejam considerados herdeiros da tradição ocidental) é “exótico”, “estranho” ou, simplesmente, disforme. Formam grupos de indivíduos sem história, sem valor dentro da escala “humana” de importância. Assim, milhares podem morrer ao cruzar o mar, mas esse ainda é um problema “dos imigrantes”, e não uma catástrofe da humanidade. Onde foram parar aqueles belos ideais do Iluminismo, mesmo?
Não é preciso dizer que o jornalismo brasileiro reproduz o abismo psicológico em seus produtos, tomando como ponto de observação um eurocentrismo estranho à realidade brasileira em dimensão sociocultural e histórica. Aliás, exemplo similar é o da situação dos haitianos que chegam diariamente ao país: o silêncio quase absoluto de nossa imprensa tradicional sobre um atentado no qual seis pessoas foram baleadas na cidade de São Paulo é ensurdecedor. Somente com o barulho realizado nas redes sociais sobre o caso é que ele acabou virando notícia: as versões digitais dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo só tratam do ocorrido a partir do dia 8 de agosto, mesmo o crime tendo acontecido no dia 1º, no centro da capital.
Retornando ao caso dos refugiados na Europa, é essencial contextualizar os motivos pelos quais eles tentam entrar no continente. Mas esse trabalho é feito, em geral, apenas parcialmente. Ao passo que é sempre referido sua situação de fuga de conflitos em seus países de origem, pouco é dito sobre as causas desses conflitos. E mais: qual o papel dos próprios países europeus (e dos Estados Unidos) nas crises. Ou seja, o histórico de colonizações ocidentais na África e Oriente Médio tem enorme importância na constituição dos atuais cenários, de mesma forma que recentes ações militares intervencionistas completam o quadro.
E assim seguimos: em momentos nos quais a empatia poderia se tornar uma possibilidade real contra as iniquidades, muitos veículos escolhem o caminho oposto. Além de fortalecer a divisão, aprofunda-se o abismo de tal forma que a miséria humana se torna portadora de “oportunidades”. Aliada a imagens de corpos boiando nas águas que banham as praias gregas e italianas, pessoas vivendo em tendas, dormindo espalhadas pelo chão de centrais de trem ou tentando atravessar o Eurotúnel a pé, essa orientação editorial torna difícil escapar do sentimento de que, enquanto humanidade, falhamos.
***
Ivan Bonfim é doutor em Comunicação e Informação, jornalista e historiador
(fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/a-tragedia-dos-refugiados/distorcao-eurocentrista-no-noticiario/)

A hecatombe silenciosa

por Alberto Dines
O “Globo” escolheu matar-se dias depois – 34 para sermos exatos – do 90º aniversário. Efemérides não se discutem. Muito menos a forma de lembrá-las. O carro-chefe do Grupo Globo tomou sua cicuta – abriu as veias, enforcou-se ou ateou fogo às vestes — em rigoroso silêncio, entre quatro paredes, sem pronunciar uma única palavra.
Sem ao menos uma interjeição de sofrimento, tipo “aí !” cerca de sessenta jornalistas das redações de O GloboExtra e Infoglobo foram sacrificados na terça, dia 1 de Setembro. O glorioso e poderoso jornalão desligou holofotes, distribuiu mordaças, apagou-se, sumiu: não quer as condolências dos compadecidos nem o regozijo dos adversários. Quer o silêncio absoluto, segredo, anonimato, clandestinidade. Quer cumplicidades.
É livre o arbítrio, mas geralmente morre-se do jeito que se viveu e um jornal teoricamente comprometido com a divulgação dos fatos e ocorrências não tem o direito de demitir-se, omitir-se, calar. Jornais existem para testemunhar. Se preferem abdicar deste dever, perdem sua razão de ser, devolvem a credibilidade que conquistaram. Neste caso, para sempre.
Pelo visto os coveiros pretendem manter as aparências, fingir que nada aconteceu, que as vítimas não foram vitimadas e tudo continua na mesma. O mote de que o show deve continuar é uma inominável hipocrisia. Sim, o show precisa ser interrompido, ao menos por segundos, para enxugar lágrimas, respirar fundo e prosseguir.
A carnificina talvez fosse menos doída se o jornal contasse aos leitores o que aconteceu, porque aconteceu e registrasse um agradecimento aos que pagaram pelo acontecido. Não por gentileza, ou cavalheirismo, mas por devoção à verdade, por respeito a um ofício que deve ser honrado indistintamente por mandantes e mandados, contratantes e contratados.
O pool que reúne as maiores empresas de mídia do país, é um atentado ao pudor e ao Estado de Direito. Sem competição e divergências o jornalismo torna-se burocrático, cartorial, simplista. E tosco. A solidariedade da direção da Folha ao comando d e O Globo é uma postura anti-jornalística e antidemocrática, prova inequívoca de desrespeito à Constituição e ao pluralismo nela inscrito.
A silenciosa hecatombe de 1 de Setembro e a penosa cortina de silêncio sobre ela estendida remete nossa imprensa aos Anos de Chumbo, ao tempo das quarteladas e conspirações.
 Outros tempos: lembrando Roberto Marinho
 No dia 6 de Dezembro de 1973 este observador foi demitido da função de Editor-chefe do “Jornal do Brasil” onde serviu por 11 anos e 11 meses. Não contente, por perversidade, o representante dos acionistas do JB,  M.F. do Nascimento Brito, determinou que a informação sobre a demissão fosse publicada com apenas três linhas da forma menos solene possível.
Ao reparar na indignidade, Roberto Marinho pediu ao então diretor de Redação do “Globo”, Evandro Carlos de Andrade, que escrevesse um desagravo à insultuosa notícia e destacou-a na antiga coluna de Carlos Swan (precursora da não menos prestigiosa coluna de Ancelmo Góis). Um gesto fidalgo e solidário que o talento de Evandro Carlos transformou em tocante galardão.
Assim caminha a humanidade.
(fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/marcha-do-tempo/a-hecatombe-silenciosa/)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O assassinato da humanidade

por Jeferson Miola

O corpo inerte de Aylan Kurdi, a inocente criança síria de cinco anos atracada já sem vida nas areias da praia de Bodrum, na Turquia, é o retrato da morte da humanidade. É a prova indesmentível de uma morte matada; não de uma morte morrida. É o testemunho de uma morte moralmente inaceitável; de uma morte, enfim, repugnante.

O corpo inerte de Aylan Kurdi atesta o assassinato da humanidade.

Centenas de milhares de mulheres, homens e crianças fogem da Síria, Líbia, Iraque, Nigéria, Paquistão, Afeganistão, Kosovo e do Oriente Médio numa viagem desesperada – e não raras vezes mortífera – à Europa.

Os desamparados que sobrevivem aos naufrágios no Mediterrâneo, quando pisam no território europeu, são repelidos com criminosa e cínica indiferença, isso quando não são armazenados em campos de concentração para refugiados.

É inútil, a estas alturas, se iludir com a crença de que o holocausto tenha gerado uma consciência humanitária e solidária na Europa. Se assim tivesse sido, não se assistiria a esta repetição de lógicas racistas, segregacionistas e xenófobas do passado nazi-fascista.

A diáspora é o resultado cruel do intervencionismo das potências europeias e dos EUA. Os refugiados são os “efeitos colaterais” da geopolítica que desestabilizou e incendiou países do Oriente Médio e do norte da África e expulsa populações para um exílio forçado.

Causa asco a ausência de compromisso ético e humanitário da Europa com as vítimas das políticas desastrosas empregadas pelos próprios dirigentes europeus em cumplicidade com os EUA.

Aylan Kurdi, este inocente ser assassinado em águas mediterrâneas, é filho histórico desse tempo sombrio, em que a estupidez e o egoísmo da espécie humana sob a égide capitalista parece vencer o ideal de humanidade.

(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Coluna/O-assassinato-da-humanidade/34414)

Direita nativa desiste de copiar a Europa

Por Flávio Aguiar, na Rede Brasil Atual:



Uma das características de muita gente da direita brasileira é sua extrema falta de educação, selvageria, incivilidade, grossura e desprezo pelo próprio país. Com exceção desse último item, os restantes não são exclusivos do Brasil. Por exemplo, aqui na Alemanha a extrema-direita tem-se esmerado em atos de selvageria, grossura etc. contra os imigrantes, refugiados, que aqui acorrem (embora muitos cidadãos daqui estejam se esmerando em bem recebê-los).

Recentemente houve casos como o do cara que entrou numa estação de metrô e urinou – urinou (!) – em cima de imigrantes que lá estavam, inclusive uma criança. Houve atentados a faca em casas de refugiados, ou até com gás pimenta, mandando gente para o hospital. Sem falar nos incêndios criminosos que se multiplicam contra estes abrigos durante a noite.

Mas no Brasil predomina uns "gestos" da direita que consistem em afirmar constantemente que "o que é bom para a Europa e os Estados Unidos não é bom para o Brasil". Transporte público privilegiado em relação ao individual, corredores de ônibus, restrições ao uso de carro, controle rígido de velocidade, saúde pública, etc. etc. etc. – tudo isso é bom para a Europa, mas não para o Brasil, "nem existe no Brasil" o que, aliás, é mentira, porque o SUS é muito melhor do que muito do que existe em muitos países na Europa e também nos Estados Unidos (onde o sistema público de saúde claudica e está sendo reerguido por Barack Obama, contra uma feroz oposição dos republicanos).

Tome-se o exemplo do controle de velocidade. Li estarrecido que há uma ação judicial movida pela OAB-SP (corrijam-me se eu estiver errado) contra a diminuição da velocidade máxima nas marginais da capital paulista. Apesar de o número de acidentes ter baixado depois da medida. Vi outras manifestações grosseiras na mídia velha, por parte dos arautos do individualismo feroz, contra a extensão de corredores de ônibus e de ciclovias em São Paulo. Um descalabro político e moral, só compreensível pelo desvario mal-educado que tomou conta dos direitistas no país desde a Copa do Mundo e em especial depois da inesperada (só para eles) derrota do Aécio em outubro passado.

De vez em quando vale mesmo prestar atenção em lições que podem ser lidas a partir da Europa, desde que sem eurocentrismo nem aquilo de acreditar que o Brasil não tem jeito. Por exemplo:

1- Aqui em Berlim, como em todas as cidades da Alemanha, o limite de velocidade nas ruas é de 50 quilômetros por hora. Perto de escolas ou em regiões densamente povoadas, 30. Exceções: as autoestradas de administração municipal, onde o limite é 100.

2- Pedestre tem preferência em qualquer lugar.

3- Em muitas das autoestradas federais não há limite de velocidade. Mas em outras há: 130, 100, 80 quilômetros por hora.

4- Em estradas de zonas rurais os limites são variam: 100, 90, 80, 70 quilômetros por hora. Mas atravessando zonas urbanas cai para 50, e em centros de cidades, 30.

5- O controle desses limites é rígido. Não há recurso, a menos que se comprove um erro por parte da autoridade ou de radares etc.

6- Se passar três por um sinal vermelho, adeus carteira de motorista. Alcoolizado, idem. Multas enormes. E penas duras, no caso de acidentes.

7- Para completar este quadro que muita gente da nossa "élite" acharia dantesco se fosse no Brasil, o Senado de Berlim (em termos brasileiros o conselho de secretários municipais) adotou uma nova lei, estabelecendo um limite de 30 quilômetros por hora em certas ruas durante a noite, para diminuir o ruído, pois está comprovado que a submissão constante a ruídos acima de 55 decibéis durante o sono aumenta o risco de problemas cardiovasculares.

Durma-se com um silêncio desses!
(fonte: http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/09/direita-nativa-desiste-de-copiar-europa.html)

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Eles e nós

por Ana Cláudia Vargas
Todas as questões existenciais que envolvem relacionamentos humanos são complexas, não é mesmo? Pense em como é trabalhoso – mas isso não significa impossível – lidar com parentes difíceis, por exemplo.
Agora amplie a visão para além dos muros familiares e imagine-se envolvido em uma trama centenas de milhares de vezes mais complexa. Imagine que você nasceu e viveu até a pouco em um país destroçado no qual o estado inexiste e sequer foi capaz de estruturar, minimamente, uma sociedade nem digo, democrática, mas ao menos, em condições de oferecer o básico para que você pudesse viver.
Simplesmente: viver; e nem estou dizendo viver ‘com dignidade’ como dizem os bem intencionados; só viver mesmo: ter direito a existir, respirar, comer e dormir, se casar ou não, ter filhos ou não, amar, estudar, trabalhar, plantar um limoeiro no quintal da sua casa, conversar com o vizinho (ou o contrário: brigar com o vizinho), assistir TV ou detestar isso e preferir ouvir música ou ir passear na praça…
São infinitas as possibilidades para quem pode usufruir do fato de existir. Fernando Pessoa escreveu que‘basta existir para ser completo’, mas nós humanos somos – como já dito – muito chatos e complicados, e ficamos procurando pelos em ovos, agulhas em palheiros e por aí afora. Não nos contentamos apenas em existir e queremos dar sentido a isso (plantando, amando, brigando, comendo e plantando ou não limoeiros).
Pois é, mas voltando ao primeiro parágrafo: imagine agora que você nasceu em um país que lhe nega o simples exercício de sua própria existência. Mas esse direito não lhe foi concedido por uma instância superior e bem acima dos governos terrenos? Mesmo que você não acredite em Deus ou em qualquer força superior, imortal, eterna e transcendente; tente se imaginar somente como um ser humano que tem negadas as mais ínfimas possibilidades de exercer seu direito a simplesmente viver sua vida.
O que fazer em um caso como esse: suicidar-se? E se você tivesse, apesar disso, cometido o ‘pecado’, por exemplo, de ter se casado e ter tido filhos em um lugar como esse (ou seria esse um ‘não lugar’ já que impossibilita qualquer tentativa de viver?) e previsse para esses filhos um futuro tenebroso?
Pois é nessa situação que estão esses migrantes que, diariamente, vemos ou temos notícias de que estão morrendo nos mares, sendo encontrados em estado de decomposição em caminhões abandonados (não é a primeira vez que isso acontece e nem será a última), sendo tratados como lixo em todos os lugares em que ousam exercer o direito a simplesmente viverem suas vidas.
Quando são resgatados dos navios, aqueles que conseguem sobreviver, é claro, mal conseguem abrir os olhos e os outros humanos que os recebem, usam roupas estranhas que se parecem com vestimentas de astronautas, até máscaras – porque tocar naquelas pessoas deve ser muito perigoso mesmo, algo verdadeiramente insuportável para os padrões minimamente aceitáveis dos imaculados governos europeus.
No momento em que os vemos tão indefesos, aqueles homens, mulheres e as crianças, desembarcando dos botes ou navios e sendo recebidos como mercadorias indesejadas (seriam estragadas?), já sabemos também que serão devolvidos tão logo os governos cumpram os processos de recebimento a contragosto; diante disso, pensamos que talvez melhor teria sido para eles serem tragados pelo mar e comidos pelos animais marinhos como tantos de seus compatriotas o foram.
Enquanto escrevo esse inútil texto, muitos deles devem estar agora mesmo na Líbia, Síria ou em qualquer outro país devastado por guerras internas, embarcando em navios, se aventurando em qualquer tipo de transporte perigoso com suas trouxas e suas crianças e eles não podem ter medo de se aventurar nisso porque o ‘não lugar’ no qual nasceram também não se interessa – nem nunca se interessou – por suas existências.
Essas pessoas são como os animais atropelados que vemos nas rodovias: não queremos enxergá-las, nos recusamos, mas bem sabemos que todos os carros que passarem por ali, depois do nosso, vão destroçá-las centenas de vezes.
E nada fazemos ou podemos fazer de prático e imediato.
E me pergunto inutilmente: o que será dessas pessoas? Desses nossos iguais que ninguém quer por perto? Porque os governos dos países ricos nada fazem por eles? Sim, há questões diplomáticas, há as guerras – sempre as guerras – em seus próprios territórios; há aquele tipo de burocracia que emperra tudo e sabemos que em casos como esses, não há lugar para tolas utopias: de que forma os governos dos países ricos poderiam acolher essas pessoas? Que tipo de tratado, lei ou documento diplomático (nem sei se é correto escrever dessa forma) poderia, finalmente, conceder a essas pessoas algum tipo de asilo, acolhimento, uma maneira, enfim, de dar a elas um lugar no qual elas possam simplesmente viver a vida que pertence a elas por direito?
Como você e eu, elas também têm o mesmo direito de estarem no mundo hoje… Ou não?
Porque isso é negado a elas de forma tão odiosa, revoltante, indigna e de uma forma que deixa em todos nós um pleno sentimento de fracasso, vergonha e incompetência? Pois é exatamente assim que me sinto porque sei que a linha que separa a minha (nossa) existência e a deles é invisível, pois somos todos humanos, afinal de contas.
(fonte: http://www.babelcultural.com/revista/eles-e-nos/)

Cinco grandes enfermidades da era digital

neck
“Pescoço de Smartphone” afeta em especial adolescentes, degrada coluna e pode exigir cirurgia. Uso abusivo de aparatos também atinge visão, audição e humor
Por Janet Allon, com tradução de Cynara Menezes, em seu blog 
Encare a realidade: estamos todos viciados em nossos dispositivos eletrônicos. Você deve conhecer alguns poucos solitários que ainda resistem, determinados a se manter afastados e a viver fora deste cercadinho, mas eles são cada vez menos numerosos. A maioria de nós estamos vivendo em um mundo cada vez mais conectado, dependente de comunicação e informação instantâneas, e entramos em pânico quando não conseguimos achar nossos smartphones.
Ninguém quer ouvir isso, mas estamos pagando um preço alto por este comportamento. Nossos hábitos tecnológicos estão arruinando nossas habilidades e nossa saúde mental e física. Estar alerta para os possíveis prejuízos é sua primeira linha de defesa contra o envelhecimento precoce, as dores e a diminuição da capacidade cerebral –assim como desconectar com maior frequência. Aqui estão cinco enfermidades digitais sobre as quais você precisa ser alertado:
1. Text Neck (“pescoço de mensagem”)
Você os vê em toda parte. Adolescentes, usuários do transporte público de meia idade e clientes de supermercado de todas as idades debruçados sobre objetos para os quais olham fixamente como se fossem pequenos milagres, com seus pescoços projetados para a frente e para baixo em um estranho e aflitivo ângulo. Eles simplesmente ficam lá, como se estivessem congelados, alheios a tudo.
Legiões de pessoas estão causando a si mesmos “text neck”, um problema do mundo moderno que pode arruinar o pescoço e a espinha de alguém. As pessoas estão debruçadas sobre smartphones, absortos em conversas online, checando o Facebook, retornando emails, postando fotos no Instagram, sem se dar conta de que estão colocando uma imensa tensão em seus pescoços e colunas vertebrais que irá atormentá-los para o resto da vida.
A cabeça é pesada. Sob a melhor das circunstâncias, tem o peso de um objeto de 5kg. Seu pescoço e coluna trabalham sem descanso para segurá-la e são feitos para isso. Ou eram, até que os smartphones vieram e deram a todo mundo o incentivo para mover suas cabeças para frente em um ângulo antinatural, por horas sem fim.
Como explica o Washington Post:
À medida que o pescoço se projeta para a frente e para baixo, o peso sobre a coluna vertebral começa a crescer. Em um ângulo de 15 graus, o peso é ao redor de 20kg; um ângulo de 30 graus corresponde a 18kg; 45 graus são 22kg; e a 60 graus o peso é de 27kg.
Esta é a carga que vem de ficar olhando fixamente para o smartphone –da mesma forma que milhões de pessoas fazem durante horas todos os dias, de acordo com uma pesquisa publicada por Kenneth Hasraj na National Library of Medicine. A pesquisa irá aparecer no próximo mês na Surgical Technology International. Ao longo do tempo, dizem os pesquisadores, esta triste postura, algumas vezes chamada de “text neck”, pode levar a um prematuro desgaste na coluna, degeneração e até mesmo cirurgia.
27 quilos!!! Mal comparando, é como carregar uma criança de 8 anos ao redor do pescoço por quatro horas ao dia. O problema é especialmente grave para pessoas jovens, Dr. Hansraj disse ao Post, que podem estar sendo conduzidos, involuntariamente e inconscientemente, a uma vida de dor na coluna.
textingneck
Algumas maneiras que ele recomenda para evitar isto:
 Olhe para baixo em seu celular com os olhos. Não é necessário projetar o pescoço.
 Exercite-se: Mexa a cabeça para a esquerda e para a direita várias vezes. Use as mãos para oferecer resistência e empurre a cabeça contra elas, primeiro para a frente e depois para trás. Fique de pé em uma porta com os braços estendidos e empurre o peito para frente para fortalecer “os músculos da boa postura”, disse Hansraj.
(anúncio da prefeitura de Nova York contra o volume alto dos fones de ouvido)

2. Perda auditiva

Isto é deprimente. A perda auditiva não acontece mais só com os velhos. A maioria de nós muito provavelmente está ouvindo pior cada vez mais cedo. Se você já não está tendo problemas em ouvir conversas normais cotidianas, este dia virá, e antes do que você imagina. Isto é, ao menos que você tenha protegido seus ouvidos basicamente a vida inteira.
A perda auditiva prematura e aguda não é somente resultado de nossos dispositivos digitais, também é um produto dos ruídos do dia a dia que todos nós consideramos normal, mas que está em um nível de decibéis que causa dano: cortadores de grama, sirenes, avisos sonoros do metrô, secadores de cabelo, concertos de rock barulhentos, alarmes de carro, até mesmo sistemas de som de restaurantes e cinemas e certos brinquedos infantis podem todos ser, bem, ensurdecedores.
Todas estas coisas barulhentas mantêm nossos frágeis tímpanos vibrando e, mantidas por muito tempo e em volume exagerado, podem danificar todo este aparato insubstituível.
Mas o uso generalizado de aparelhos de música portáteis está levando esta epidemia à estratosfera. De acordo com o New York Times, “um estudo nacional feito em 2006 pela Associação Americana de Fala, Linguagem e Audição descobriu que entre usuários de aparelhos de som portáteis, 35% dos adultos e mais de 59% dos adolescentes disseram ouvir música em altos volumes.” Fones de ouvido pequenos são piores que aqueles grandões, mas não importa: se você estiver ouvindo em um volume alto o suficiente para abafar o ruído exterior, é melhor começar a aprender a linguagem de sinais.
A perda auditiva é algo cumulativo e irreversível. Continue a usar seus fones de ouvido, mas abaixe o volume.
3. Exaustão Cerebral
O que o uso constante de meios digitais faz a nossos cérebros é um grande e ainda aparentemente especulativo tópico. Mas a ciência está começando a chegar lá, e não é nada bonito o que está aparecendo. Em termos simples, o uso excessivo do smartphone nos faz menos produtivos, menos descansados, mais esquecidos e, em uma palavra, mais estúpidos.
Um monte de gente passa os dias em seus computadores e as noites checando seus celulares, retornando mensagens e emails. Isto, de acordo com um estudo recente conduzido pela Universidade da Florida, pela Universidade Estadual do Michigan e pela Universidade de Washington rouba das pessoas a capacidade de recarregar as energias nos momentos de folga. Com isso, a produtividade, para não mencionar a saúde mental, diminui.
Checar múltiplos dispositivos e telas durante o dia também perpetuou a ideia de que as pessoas se tornaram “multitarefas”, mais capazes de passar de uma tarefa a outra, de mudar de foco rapidamente, e tudo graças aos milagres da tecnologia.
Ilusão.
De acordo com pesquisadores, as multitarefas constantes restringem nossa habilidade de se concentrar por períodos prolongados de tempo, uma espécie de pré-requisito para realizações significativas. Finalmente, até mesmo quando todas as telas estão desligadas nossa concentração já era.
“As pessoas com quem conversamos continuamente disseram, ‘olhe, quando eu tenho que me concentrar desligo tudo e fico focado’” disse o professor Clifford Nass, da Universidade de Stanford, à NPR (rádio pública dos EUA).“Desafortunadamente, eles desenvolveram hábitos mentais que lhes impossibilita estar inteiramente focados. Eles são os bobos da irrelevância. Simplesmente não conseguem se manter concentrados.”
Você não lê mais livros? Eu raramente o faço, apesar de ler copiosamente online. Acontece que estou pagando um preço cognitivo e possivelmente psicológico por isto. Ler numa tela não é tão benéfico quanto ler algo impresso. Um estudo de 2014 “descobriu que leitores de contos de mistério em um Kindle eram significativamente piores em lembrar a ordem dos acontecimentos do que aqueles que leram a mesma história em papel”.
E quanto mais você lê digitalmente, mais difícil fica mergulhar em um livro real. Outros benefícios da leitura incluem crescente capacidade de compreensão, diminuição do estresse e melhor sono. Todos eles estão mais relacionados à leitura impressa do que à digital. Muito tem se escrito também sobre o impacto destrutivo da luz azul emitida pelos dispositivos digitais no ciclo circadiano, o relógio biológico do nosso corpo, resultando em um sono pobre e os consequentes problemas mentais e físicos.
Sua incapacidade de se separar de eletrônicos também irá afetar e infectar as pessoas a seu redor, amigos, colegas de trabalho e familiares. Quando nós perdemos a capacidade crucial de desconectar, a saúde mental e o bem estar de todo mundo é afetada. Experts em relações familiares têm apontado que as crianças se sentem afetadas por pais que se encontram indisponíveis porque estão constantemente em seus celulares. Então, se não é por você mesmo, pelo menos se desconecte por causa de outras pessoas que se preocupam com você.
Leia mais (em inglês) aqui.
4. Cara de computador
Ok, basta de cérebro. Gastar incontáveis horas diante do computador está arruinando o visual das pessoas! Seu visual! Sério, se isto não o convencer a ficar mais tempo longe da tela do computador, não sabemos o que o fará.
Cirurgiões plásticos afirmam que mais e mais mulheres estão desenvolvendo a aterrorizante “cara de computador”, uma combinação de franzidos permanentes, rugas ao redor dos olhos, papada (papada!) e queixos duplos por olhar para baixo por longos períodos de tempo.
“Se você passa a maior parte do tempo olhando para baixo, os músculos do pescoço se encurtam e caem, dando a você um queixo duplo”, disse o cirurgião cosmético Michael Prager ao Daily Mail. Como quando as pessoas trabalham e estão sob estresse frequentemente têm sérias ou até malhumoradas expressões em seus rostos, estas linhas podem ficar permanentemente estampadas em rostos jovens.
A solução: levante, alongue seu pescoço, mude sua expressão, mova a tela para a altura do olho. Ou use Botox, claro, de acordo com os cirurgiões plásticos, de qualquer jeito.
Nenhuma palavra ainda sobre a terrível “cara de selfie”, mas ela não tem como ser boa.
5. Síndrome da visão de computador
As más notícias, embora não surpreendentes: sentar-se em frente à tela do computador hora após hora, semana após semana, ano após ano, como muitos trabalhos requerem que você faça, causa dor e desconforto nos olhos, visão embaçada e dores de cabeça.
A boa notícia é que os oftalmologistaas ainda não acham que a síndrome de visão do computador causa dano permanente à visão. E há algo que você pode fazer se está experimentando as conseqüências negativas de sentar-se em frente à tela do computador em excesso –além de levantar-se e fazer outra coisa, tipo para sempre, o que não é bem uma opção.
A maior parte deste dano visual pode ser eliminado fazendo mudanças em seu local de trabalho. O Scheie Eye Institute do Penn Medical Center diz que “reduzir o brilho e os reflexos na tela do computador modificando a luz no ambiente, fechando as janelas, mudando o contraste ou o brilho da tela, ou colocando um filtro ou capa no monitor”, tudo isso irá ajudar.
Eles também recomendam:
“Mover a tela do computador para aumentar o conforto dos olhos. A tela deve estar à distância de um braço (ao redor de 50 a 70 centímetros) para obter uma distância de foco confortável à visão. A tela também deve estar em linha reta na frente do rosto e não para o lado, para evitar a fadiga ocular. O centro do monitor deve estar de 10 a 20 centímetros mais baixo que os olhos para permitir ao pescoço relaxar e para diminuir a superfície exposta do olho, o que irá reduzir a secura e a coceira.”
Acho que você provavelmente está pronto para dar um tempo da tela do computador agora mesmo.
(fonte: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/cinco-grandes-enfermidades-da-era-digital/_

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Esta semana no Café História


[1] Evento:
 Escravidão e Mestiçagens
Acontece entre os dias 5 e 8 de outubro de 2015, na Faculdade de Filosofia e Ciências HUmanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Congresso "Escravidão e Mestiçagens - Do que estamos falando? Antigos conceitos e modernos anacronismos". [Confira]
[2] Mural: 
História Digital
No último dia 28 de agosto, sexta-feira, o fundador do Café História, o historiador Bruno Leal (NIEJ/UFRJ), fez a conferência de abertura da Semana Integrada da UniAGES, em Paripiranga, na Bahia, para um público de aproximadamente 150 alunos e professores do curso de história da faculdade. O tema da conferência foi “Novas tecnologias, difusão do conhecimento histórico”. Leal falou sobre a questão da difusão da história nas mídias digitais e sobre o desenvolvimento do Café História, maior rede social de história em língua portuguesa na internet. Nesta edição do evento – a terceira promovida pela instituição – teve como mote “história e historiografia regional” e contou ainda com a participação de vários pesquisadores, entre os quais os professores José Barros de Assunção (UFRRJ) e Durval de Albuquerque Muniz (UFRN). [Confira]
[3] Notícia:
 Olimpíadas na Alemanha Nazista
O uso político das Olimpíadas, não só como propaganda, é quase tão antigo quanto os próprios jogos. Na segunda reportagem da série Espírito Olímpico, feita pelo Jornal da Globo, veja como Adolf Hitler fez das olimpíadas uma ferramenta política. A imagem do ditador alemão hoje é parte de uma história bem conhecida. Hitler é sinônimo do mal no século XX. O horror dos campos de concentração, o genocídio, 50 milhões de mortos, Segunda Guerra Mundial. [Veja]
[4] Acadêmico:
 Revista Educação
Publicada semestralmente pelo departamento de educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, a revista “Educação”, que acaba de publicar um novo número, destina-se à publicação de trabalhos inéditos e originais na área de Educação, resultantes de pesquisas e práticas educativas refletidas teoricamente. A Revista é organizada em sessões de Dossiê, Demanda Contínua e Resenha. [Leia mais]
[5] Fórum:
 Artes e Sociedade
Qual o papel das artes na formação de uma sociedade? Este é o tema do mais novo fórum do Café Historia. Quer contribuir com esta importante discussão interdisciplinar e super atual? [Clique aqui]

Relendo “Capitães da areia”.


Antônio de Paiva Moura


O livro de Jorge Amado, Capitães da Areia, lançado em 1937, em forma de ficção, retrata a vida de um grupo de menores abandonados que, diante da repulsa da sociedade e da indiferença do Estado, acabam por recorrer a diversos tipos de crime para sobreviver. Costumeiramente, a literatura romântica e idealista da primeira metade do século vinte, só tomava como personagens heróicas, crianças bem sucedidas na vida, inteligentes e bem comportadas no meio social. A publicação de “Capitães da areia” foi chocante ao ponto de ser considerado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, como propaganda comunista. Foi a primeira e única vez que o público brasileiro deparou-se com um garoto de rua assumindo o papel de protagonista de uma obra literária. Trazia à tona questões como a desigualdade social e o abandono, bem como as violências delas decorrentes. Os pequenos marginais são elevados à condição de heróis da trama. O autor consegue levar o leitor a se desfazer de julgamentos maniqueístas. Os personagens são órfãos miseráveis, menores abandonados de favelas e de famílias desestruturadas. São pessoas literalmente carentes e desprovidas de acessos aos bens indispensáveis para a vida. Além do sofrimento pela carência, são violentados pelas instituições coercitivas do Estado e desprezados pela sociedade. Desta forma, restam-lhes os meios ilícitos para assegurar a única coisa que sobrou que é a vida. 

Passados quase oitenta anos da publicação da referida obra, a situação dos meninos de ruas das grandes cidades brasileiras continuam inalterada. Os arrastões ocorrem exatamente nos meios de circulação das classes altas. Os assaltos nas ruas das regiões mais nobres ganham protagonistas nas manchetes dos jornais e nas redes sociais. Como diz Gavião (2015), nesse cenário, a revolta dos desfavorecidos, que nada têm a perder, a violência é a única linguagem com a qual estão habituados, desde a infância.  Percebe-se que a carência de educação e conscientização política não se limita aos 
desprivilegiados. Atinge igualmente uma fatia relevante das camadas da sociedade brasileira, composta por elementos orgulhosos de seus diplomas, mas analfabetos políticos, incapazes de ultrapassar o senso comum. Na verdade, os diplomados e os “bem herdados”, têm canais de comunicação para expressarem seus desejos de repressão a meninos de rua.  Quando o discurso de 
repressão não funciona, pregam a vingança pessoal e o “fazer justiça com as próprias mãos”. Os “bem herdados” querem levar a vida no gozo sem limite, sem serem incomodados pelos capitães da areia de nossos dias.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O fantasma do Ultra-capitalismo

Três acordos globais de comércio, negociados em sigilo, ameaçam direitos sociais, ambiente e próprio sentido da democracia. Que são e como afetam o Brasil
Por Antonio Martins
1.
Sobre salas blindadas e seus segredos
Num texto publicado há dias, por Outras Palavraso sociólogo Michel Löwy expõe, em termos teóricos, a crescente tensão entre a voracidade do capitalismo e a fragilidade da democracia, acossada por um sistema que deseja reduzir todas as relações sociais a mercadoria. Para um exemplo concreto, considere este relato, feito pelo jornalista Robert Smith e publicado em 14/8 pelo diário britânico The Independent.
“No porão do Capitólio [a sede do Legislativo dos EUA], há uma sala, blindada e a prova de som, e as únicas pessoas autorizadas a entrar são os senadores norte-americanos; e eles não podem levar seus assistentes, não podem levar seus telefones, eles não podem sequer tomar notas no interior da sala. Dentro desta sala, não estão os códigos para as armas nucleares, nem os arquivos da CIA, nem os documentos que nos contam que um alienígena aterrissou em Roswell. Não: nesta sala está o texto de um acordo comercial”.
TEXTO-MEIO
Não é ficção, mas algo muito concreto (ainda que desconhecido do público), contou The Independent. Dias antes, restrições idênticas haviam sido estabelecidas do outro lado do Atlântico. A Comissão Europeia determinou que o texto, em negociação, do Tratado Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP, em inglês) só permaneça disponível, mesmo para os membros do Parlamento Europeu, numa “sala de leitura”, onde enfrentarão restrições idênticas às impostas aos senadores norte-americanos.
Que são estes acordos comerciais, tramados tão secretamente por governos e grandes corporações, quase sem cobertura alguma por parte da velha imprensa? Quais suas consequências? De que maneira eles podem afetar o Brasil? Responder a estas questões será cada vez mais importante, para os que desejam compreender as configurações atuais do capitalismo – e enfrentar seu poder.
À margem de qualquer debate democrático e da própria Organização Mundial do Comércio (OMC), três grandes acordos sobre trocas internacionais estão em debate, em fóruns restritos, neste momento. Seu principal motor é o governo dos Estados Unidos. São eles:
Acordo Comercial Transpacífico (TTP, ou Transpacific Trade Partnership, em inglês). Unirá, se aprovado, os Estados Unidos a dez países asiáticos (entre eles, Japão e Coreia do Sul), quatro latino-americanos (México, Chile, Peru e Colômbia), mais Austrália e Nova Zelândia. A China, hoje a nação que mais movimenta o comércio internacional, está propositalmente excluída.
Acordo Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP, ou Transatlantic Trade and Investiments Partnership). Reúne a nata do capitalismo: Estados Unidos e União Europeia (UE). Debatido sigilosamente ao menos desde 2006 (versões anteriores da mesma proposta datam do final do século passado), só teve seu rascunho revelado em março de 2014, graças a um vazamento do jornal alemãoDie Zeit.
Acordo sobre Comércio de Serviços (TiSA, ou Trade in Services Agreement). É o mais opaco de todos – e também o mais abrangente e perigoso. Inclui 53 países: Estados Unidos, toda a União Europeia (UE), a maior parte dos membros do TTP (inclusive Japão e Coreia), mais nações como Turquia, Paquistão, Suíça e, talvez surpreendentemente, Uruguai). A partir de junho de 2014, uma série devazamentos do Wikileaks revelou seus primeiros rascunhos. Talvez por seu caráter secreto, o acordo encarna abertamente, como se verá a seguir, cláusulas de bloqueio à democracia. Nenhum membro dos BRICS foi convidado.
Mas qual o conteúdo e o sentido político dos acordos? Embora as informações disponíveis sejam muito fragmentárias, devido à natureza ultra-sigilosa das negociações, os vazamentos permitem, aos poucos, compreender o essencial. Fala-se, na fachada, em facilitar circulação de riquezas e conhecimentos. Mas impõe-se um preço amargo: favorecimento das grandes corporações transnacionais; restrição severa da democracia, com bloqueio da capacidade das sociedades e Estados para definir suas próprias leis; ataques aos direitos sociais e ao ambiente. Como este passo é possível?

2.
O setor mais vasto da economia mundial
TiSA, TTP e TTIP tratam, todos, do comércio de serviços – daí sua abrangência e alcance. É há décadas, em praticamente todo o mundo, o setor mais vasto das economias: 80% do PIB, nos EUA e UE; 65% no Brasil; 46,8% na própria fábrica do mundo – a China, onde superoupela primeira vez, em 2013, a indústria. Ao contrário da agricultura e atividade fabril, aqui não se produzem bens materiais, mas relações sociais. Conhecimento, Cultura, Comunicação, Afetos: um universo amplo de atividades cada vez mais central em todas as economias, que inclui o projeto de engenharia, a canção, o programa de computador, o atendimento psicanálitico, a campanha publicitária, o corte de cabelo, o restabelecimento de uma rede elétrica ou hidráulica.
Por sua natureza imaterial e relacional, este vasto arquipélago foi menos atingido, até agora, pela globalização e ultra-concentração empresarial. Grandes corporações são capazes de abrir os mercados externos à importação de sementes Monsanto ou de IPads. Mas como dominar num país, cultura e idioma estrangeiros, os escritórios de advocacia, as empresas de construção civil, as escolas secundárias, as redações de jornais e revistas, as oficinas mecânicas?
Esta dificuldade objetiva é um dos dois fatores que têm mantido o setor de serviços razoavelmente nacionalizado, na maior parte do mundo. O segundo são as legislações: quase todos os países estabelecem proteções à produção nacional. As duas grandes tentativas de quebrar estas barreiras fracassaram na virada do século, porque as sociedades reagiram, em ações memoráveis. Em 1998, naufragou, após três anos de negociações secretas, o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). Um ano depois, sucumbiu a “Rodada do Milênio” da Organização Mundial do Comércio. A debacle deu-se em Seattle (EUA), sob pressão, então inédita, de movimentos sociais de todo o mundo, em protestos de rua que dariam origem ao chamado “altermundismo” e, em seguida, aos Fóruns Sociais Mundiais.
TiSA, TTP e TTIP buscam reverter esta derrota, num cenário político global transformado. Desde 2008, o mundo vive crise financeira prolongada. A partir de 2009, ela tem resultado, no Ocidente, em intensa ofensiva contra os direitos sociais e a democracia: começou na Europa, espalhou-se para a América do Norte e bate, agora, às portas da América do Sul. Quebrar as defesas que protegem o setor de serviços, abrir às corporações internacionais a imensa economia do imaterial, é o objetivo declarado dos três acordos. Quando forem adotados, os países que os firmarem deverão tratar como se fossem nacionais as empresas prestadoras de serviço com origem em qualquer outra nação signatária do mesmo acordo.
Em alguns ramos, as consequências podem ser imediatas. Há décadas, por exemplo, as poderosas corporações de abastecimento de água e saneamento dos EUA e França lutam para se expandir internacionalmente, derrotando empresas locais. Ao analisar o texto do TiSA, vazado pelo Wikileaks, a pesquisadora mexicana Silvia Ribeiro, do grupo ETC, chamou atenção para sua abrangência. Ele requer o fim das proteções nacionais a um leque de atividades que inclui “desde água e alimentação a saúde, educação, pesquisa científica, comunicações, correios, transportes, telecomunicações, comércio eletrônico, vendas no varejo e atacado, serviços financeiros e muito mais – incusive os mal-chamados ‘serviços ambientais’ relacionados a florestas, sistemas hidrológicos e outras funições dos ecossistemas”.
Além de derrubar barreiras alfandegárias, os Estados Nacionais envolvidos nos três acordos devem fazer uma concessão a mais. Precisam renunciar até mesmo ao direito de estimular a produção nacional, dando-lhe preferência nas compras governamentais. Sob, tais regras, seriam anuladas, por exemplo, as normas que fizeram renascer a indústria naval brasileira, ao torná-la fornecedora preferencial de sondas para a extração de petróleo no país.
3.
Democracia encurralada e tribunais de exceção
Mas TTP, TTIP e TiSA não buscam apenas abrir, em todo o mundo, o setor de serviços às corporações planetárias. Um segundo objetivo épadronizar as legislações dos países signatários sobre temas cruciais como sistema financeiro, seguridade social, produção e circulação do conhecimento, liberdade na internet, segurança alimentar. Adotada a pretexto de facilitar a “livre circulação” de serviços, esta uniformização tem, curiosamente, mão única. Em todos os casos, atende a reivindicações das transnacionais e atinge direitos sociais e meio-ambiente.
Num texto sobre o TTP disponível na edição original do Le Monde Diplomatique, a jornalista Martine Bulard destaca a ameaça aos medicamentos genéricos. Os vazamentos revelam que, apoiadas pelos Estados Unidos, as transnacionais farmacêuticas reivindicam ampliar a vigência das patentes que lhes garantem exclusividade na produção das drogas que registram. Há muito criticado pelos movimentos que lutam pelo Direito à Saúde, este monopólio, que hoje em geral estende-se por vinte anos, passará a oitenta ou mesmo 120, caso o texto entre em vigor. Além disso, alerta Bulard, seriam patenteáveis – ou seja, passíveis de controle monopolista – as plantas, os métodos de diagnóstico, de tratamento e de operações cirúrgicas…
No altar da chamada “propriedade intelectual”, sacrifica-se também o direito à livre circulação de cultura e produções artísticas. Em, 31/7, Michael Geist, advogado e ativista da Eletronic Frontier Foundation (EFF), alertou em sua coluna do Huffington Post para as pressões conjuntas da Casa Branca e indústria cultural norte-americana estão fazendo sobre os demais países envolvidos nas negociações. . Segundo revelam rascunhos vazados do TTP, tanta-se exigir dos países envolvidos nas negociações que inscrevam, em suas legislações nacionais, medidas ainda mais duras contra quem compartilhar, via internet, música, filmes, vídeos, livros, artigos ou outros bens culturais.
Em todos os novos acordos, seções especiais são consagradas ao sistema financeiro. A pedido do Wikileaks, a jurista Jane Kelsey, da Universidade da Auckland (Nova Zelândia) analisou a parte do rascunho do TiSA, que trata deste tema. Num vasto relatório, ela demonstra que os bancos e instituições financeiras são, provavelmente, o setor mais favorecido pelo acordo – e o que ganha mais poderes para confrontar sociedades e governos. Os Estados nacionais ficam proibidos de estabelecer qualquer restrição ou exigência aos grupos financeiros internacionais que desejem instalar-se em seu território. Não podem limitar seu tamanho. Não podem, sequer, controlar os fluxos de capital – privando-se, portanto, de um instrumento decisivo contra ataques especulativos a suas moedas. Perdem o dirieto de impedir a entrada e saída de recursos para “instituições offshore”, ou paraísos fiscais. É uma espécie de contra-ataque preventivo. Num momento em que cresce a consciência sobre estes locais à margem da lei e seu papel na lavagem de dinheiro e sonegação de impostos pelas elites, o TiSA procura assegurar, aos super-ricos, uma proteção contra conquistas sociais futuras da democracia.
Ameaças ao meio-ambiente estão claras no texto vazado de outro dos três acordos: o TTIP. Tim Smedley, jornalista inglês especializado em Energia e Sustentabilidade, escreveu para o Guardian sobre as consequências, para a matriz energética dos países europeus, da eventual adoção do tratado. As barreiras legais que garantem a geração solar e eólica na União Europeia, diz ele, poderão ser questionadas pelos produtores de petróleo norte-americanos que usam fragmentação de rochas, ou fracking. Trata-se do método mais poluente que se conhece; no entanto, sob o TTIP, os que o praticam poderão alegar que as energias limpas europeias constituem uma “barreira artificial ao livre comércio”.
Talvez o dispositivo que melhor esclareça o verdadeiro sentido dos três tratados seja, porém a Resolução sobre Disputas entre Investidores ou Estados (ISDS, ou Investor-States Disputes Settlement), em inglês. Trata-se de uma barreira geral construída em favor das corporações transnacionais contra futuras decisões das sociedades e Estados em favor de direitos sociais e do meio-ambiente.
O ISDS é um claro limite à própria democracia. Ele permite que empresas (tratadas como “investidores”) processem Estados Nacionais sempre que julgarem que uma nova decisão política provocou redução de lucros – mesmo que não tenha atingido nenhum direito adquirido. A redução da jornada de trabalho, ou a demarcação de uma terra indígena, que interrompe a extração de minérios ou madeira, são casos típicos. Segundo os novos acordos, o julgamento das ações judiciais movidas como base no ISDS não se faz nos tribunais nacionais, como revela o site FullFact – mas sim em cortes de exceção. Trata-se de “tribunais arbitrais”, onde os processos não são públicos e os “juízes” são, frequentemente, advogados de grandes empresas.
Alguns casos concretos esclarecem como agem tais cortes. Desde 2011, a Philip Morris, empresa transnacional de tabaco, processa o governo da Austrália, e quer forçá-lo a revogar lei sobre embalagens de cigarro, que inclui advertência quanto aos malefícios do produto à saúde. A Philip Morris levou a demanda até a Suprema Corte australiana e foi derrotada. Ainda assim, pôde reabrir a questão num “tribunal arbitral” internacional, servindo-se do dispositivo ISDS presente num acordo de “livre” comércio entre a Austrália e Hong Kong. Ainda não há decisão final.
Em caso igualmente revelador, a Lone Pipe, uma empresa norte-americana de extração de petróleo por fracking, abriu processo, em 2013 contra o Estado canadense do Quebec. Exige indenização de 250 milhões de dólares, porque Montreal decidiu suspender a exploração petrolífera no subsolo do Rio São Lourenço, considerando-a nociva ao meio-ambiente, às fontes de água e à própria saúde da população… A ação da Lone Pipe é possível porque o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), do qual Canadá e EUA são signatários, inclui dispositivo ISDS.
4.Livre” comércio ou ultra-capitalismo?
É impossível examinar a relação dos países envolvidos na negociação dos três acordos sem surpreender-se, de cara, com cinco ausências notáveis. Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul estão excluídos simultaneamente do TTP, TTIP e TiSA. As cinco nações reúnem quase metade (42%) dos habitantes do planeta e 20% do PIB global. Suas reservas externas superam 5 trilhões de dólares. Todas são participantes destacados do comércio internacional. Juntas, criaram um bloco que representa uma das grandes novidades geopolíticas do século e estão avançando para constituir alternativas ao FMI e ao Banco Mundial. Por que curioso motivo os 59 participantes1 do esforço para estabelecer os três acordos preferiram o Paraguai ao Brasil; Brunei à China; o pequenino Liechtenstein à Rússia; o Panamá à África do Sul?
O sociólogo Immanuel Wallerestein começou a explorar a resposta num texto recente sobre o tema. Ele desfaz um mito. Ao contrário do que gostam de dizer seus ideólogos, tratados como TiSA, TTP e TTIPnão estebelecemargumenta Wallerstein, cenários de “livre” comércio. Esta condição só poderia ser alcançada se a redução de barreiras comerciais beneficiasse todos os países participantes do sistema de trocas internacionais. Não é disso que se trata, porém. Tanto os tratados em negociação agora quanto todos os de mesmo tipo que os precederam excluem certas nações. Seu caráter é, portanto, deprotecionismo – seja por interesse comercial, seja por razões geopolíticas.
No artigo do Le Monde Diplomatique citado acima, Martine Bulard, arrisca um passo a mais. Para ela, a própria geografia das três áreas de “livre” comércio estabelecidas pelos acordos expõe o interesse e a ação norte-americana, expressa em dois grandes movimentos. O primeiro é ocupar o centro do cenário, na negociação de três tratados que terão, se forem adiante, importância capital para o capitalismo do século XXI. Não é à toa que os EUA são, além de principais impulsionadores do TTP, TTIP e TiSA, o único país presente ao mesmo tempo nas três negociações.
O segundo movimento – ligado ao anterior porém mais específico – é isolar a China. Com o TTIP, Washington reforça sua aliança secular com a Europa Ocidental. Mas tanto TTP quanto TiSA visam reforçar o objetivo geopolítico e militar central acalentado pelos EUA nos últimos anos. Implica deslocar-se do Oriente Médio para a Ásia, onde, consideram os estrategistas norte-americanos, vai se dar a disputa crucial pela hegemonia planetária no século XXI.
Os novos tratados são também, portanto, elementos de uma nova “Guerra Fria”. Porém, algo mudou, em relação ao conflito que opôs,entre 1946 e 1989, Estados Unidos e União Soviética. Naquele período, Washington procurou aparecer como defensora da democracia e das liberdades. Estava alarmada com a posição de destaque que Moscou assumiu após a II Guerra e com o apelo que os ideais de igualdade social suscitavam, num mundo marcado por pobreza e subdesenvolvimento.
Agora, as máscaras caíram. Como frisa Michel Löwy e como mostra o que vimos até agora, vivemos um tempo em que o capitalismo procura livrar-se da democracia. Immanuel Wallerstein construiu uma narrativa ainda mais sofisticada para dar conta do novo cenário. Para ele, o capitalismo vive uma crise sem saída; mas este fato não deve alimentar esperanças vãs. Porque o que sucederá ao sistema hoje hegemônico pode ser tanto algo muito mais democrático e igualitário quanto o contrário. TTP, TTIP e TiSA são a prova deste argumento: sinais de um ultra-capitalismo distópico e assustador.
5.
Onde se fala de Dilma, Aécio e Eduardo Cunha
Nada garante que TTP, TTIP e TiSA entrarão em vigor um dia. O próprio caráter sigiloso das negociações sobre os três acordos é um sinal de fraqueza: revela incerteza e temor sobre como reagirão as sociedades. Vivemos tempos contraditórios. No Ocidente há, de fato, forte ofensiva do capital contra os direitos sociais e a democracia. Mas conquistas mantidas por séculos não são apagadas facilmente. E paira no ar, como admitiu há poucos dias Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, um “estado de espírito talvez não revolucionário, mas de impaciência”.
Em seu artigo sobre os três novos acordos globais, Immanuel Wallerstein descreve em detalhes as dificuldades para aprová-los. Depois de ponderar os obstáculos políticos que dezenas de governos ainda enfrentam, para empurrar os tratados a suas sociedades, o grande sociólogo vaticina: “Mesmo se um acordo fosse fechado agora, o TTP não poderia ser votado no Congresso dos EUA antes [das eleições presidenciais] de 2016. Este limite é ainda mais nítido nas negociações para um TTIP, que estão num estágio anterior de discussões”. Por enquanto, TTP, TTIP e TiSA são, nos países que os debatem diretamente, distopias muito ameaçadoras – porém, estão longe de ser certezas.
Paradoxalmente, o cenário é muito mais difícil no Brasil, que a princípio, por não participar da negociação de nenhum dos acordos, estaria livre dos efeitos de todos. Aqui, a agenda ultracapitalista proposta por TTP, TTIP e TiSA manifesta-se de duas maneiras. Em termos programáticos, vastos setores da mídia, e do conservadorismo político – localizados tanto na oposição quanto no governo – propõem “livrar” o país das “amarras” supostamente representadas pelo Mercosul, Unasul e BRICS. Desejam que o país “abra-se para o mundo”, “aproxime-se dos Estados Unidos e União Europeia”, “pegue o bonde dos novos acordos comerciais”… Este discurso está presente nas falas de Aécio Neves e no portal do PSDB na internet, mas também em incontáveis editoriais e comentários da mídia (1 2 3 4 5 6etc etc etc) e até mesmo – com idêntica ênfase! – em declarações de ao menos um ministro do governo Dilma…
Mas o pior é que em surdina, muito pragmaticamente e sem nenhum debate, a mesma agenda já invadiu os corredores e salões atapetados do Congresso Nacional. Faz parte da “ofensiva conservadora”, da qual muitas vezes falamos sem ter noção exata de suas consequências. Já se concretizou em medidas como a abertura da prestação de serviços deSaúde a empresas estrangeiras – assegurada por meio de uma lei esdrúxula, que alterou ao mesmo tempo dezenas de aspectos da legislação, sem que nenhum deles tenha sido debatido com a sociedade brasileira. Ameaça agora, por iniciativa de um senador da bancada governista, convidar as maiores empresas de aviação transnacionais para operar as rotas aéreas brasileiras. Está presente em medidas de repercussão profunda e prolongada, como o projeto de lei que autoriza a terceirização generalizada e selvagem do trabalho assalariado ou os anúncios recentes, por parte de ministros, de que haverá uma (contra-) reforma da Previdência, ainda em 2015.
Acrescentar perspectiva internacional a fatos que acompanhamos diariamente pode ser revelador e mobilizar energias. Permite constatar que há, também, pressões globais agindo sobre personagens que, de outra forma, enxergaríamos como provincianos ou mesmo bizarros.
Tome-se Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados. Muito mais que um religioso conservador, ou um articulador das piores energias do “baixo clero” do Congresso, ele é, hoje, o político com maior poder de levar adiante as pautas do ultra-capitalismo. Daí vêm sua força e suas esperanças de se manter vivo, apesar do envolvimento profundo com os crimes da Operação Lava-Jato. Observe-se os movimentos, aparentemente oscilantes, da oposição a Dilma. Se ela alterna-se entre pedir o impeachment da presidente e emparedar seu governo, obtendo dele todas as concessões possíveis, é porque outra agenda, muito mais poderosa, sobrepõe-se ao obsessivo desejo de Aécio Neves pela faixa presidencial…
Veja-se a própria situação dos partidos de esquerda, de quem se esperaria, a princípio, que resistissem à ofensiva anti-democracia e anti-direitos. Se deixam de fazê-lo, paralisados, não é por traição ou claudicância moral – mas por verem-se irremediavelmente divididos entre as antigas intenções de sua alma rebelde e as conveniências concretas de sua presença em espaços de poder.
“Olhar nos olhos de nossa tragédia é o primeiro passo para vencê-la”, escreveu certa vez Oduvaldo Vianna Filho, um dramaturgo genial cuja obra, embora quase desconhecida, permanece viva e pulsante. Em poucos países do mundo, a luta por direitos e democracia foi tão potente quando no Brasil das últimas quatro décadas. Nesse período, ela recuou diversas vezes – acossada pela brutalidade da ditadura ou surpreendida pela intensidade do choque neoliberal – e ainda assim regressou mais forte. Responde à necessidade de um resgate de séculos. Conhecer com precisão os processos globais que nos ameaçam ajudará a tramar a contra-ofensiva.

1A relação inclui os 53 Estados envolvidos no TiSA mais Brunei, Filipinas, Malásia, Singapura, Tailândia e Vietnã, que não integram o grupo mas participam do TTP. O TTIP não acrescenta membros à relação, pois é negociado diretamente por Estados Unidos e União Europeia.
(fonte: http://outraspalavras.net/capa/o-fantasma-do-ultra-capitalismo/)