quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Eles e nós

por Ana Cláudia Vargas
Todas as questões existenciais que envolvem relacionamentos humanos são complexas, não é mesmo? Pense em como é trabalhoso – mas isso não significa impossível – lidar com parentes difíceis, por exemplo.
Agora amplie a visão para além dos muros familiares e imagine-se envolvido em uma trama centenas de milhares de vezes mais complexa. Imagine que você nasceu e viveu até a pouco em um país destroçado no qual o estado inexiste e sequer foi capaz de estruturar, minimamente, uma sociedade nem digo, democrática, mas ao menos, em condições de oferecer o básico para que você pudesse viver.
Simplesmente: viver; e nem estou dizendo viver ‘com dignidade’ como dizem os bem intencionados; só viver mesmo: ter direito a existir, respirar, comer e dormir, se casar ou não, ter filhos ou não, amar, estudar, trabalhar, plantar um limoeiro no quintal da sua casa, conversar com o vizinho (ou o contrário: brigar com o vizinho), assistir TV ou detestar isso e preferir ouvir música ou ir passear na praça…
São infinitas as possibilidades para quem pode usufruir do fato de existir. Fernando Pessoa escreveu que‘basta existir para ser completo’, mas nós humanos somos – como já dito – muito chatos e complicados, e ficamos procurando pelos em ovos, agulhas em palheiros e por aí afora. Não nos contentamos apenas em existir e queremos dar sentido a isso (plantando, amando, brigando, comendo e plantando ou não limoeiros).
Pois é, mas voltando ao primeiro parágrafo: imagine agora que você nasceu em um país que lhe nega o simples exercício de sua própria existência. Mas esse direito não lhe foi concedido por uma instância superior e bem acima dos governos terrenos? Mesmo que você não acredite em Deus ou em qualquer força superior, imortal, eterna e transcendente; tente se imaginar somente como um ser humano que tem negadas as mais ínfimas possibilidades de exercer seu direito a simplesmente viver sua vida.
O que fazer em um caso como esse: suicidar-se? E se você tivesse, apesar disso, cometido o ‘pecado’, por exemplo, de ter se casado e ter tido filhos em um lugar como esse (ou seria esse um ‘não lugar’ já que impossibilita qualquer tentativa de viver?) e previsse para esses filhos um futuro tenebroso?
Pois é nessa situação que estão esses migrantes que, diariamente, vemos ou temos notícias de que estão morrendo nos mares, sendo encontrados em estado de decomposição em caminhões abandonados (não é a primeira vez que isso acontece e nem será a última), sendo tratados como lixo em todos os lugares em que ousam exercer o direito a simplesmente viverem suas vidas.
Quando são resgatados dos navios, aqueles que conseguem sobreviver, é claro, mal conseguem abrir os olhos e os outros humanos que os recebem, usam roupas estranhas que se parecem com vestimentas de astronautas, até máscaras – porque tocar naquelas pessoas deve ser muito perigoso mesmo, algo verdadeiramente insuportável para os padrões minimamente aceitáveis dos imaculados governos europeus.
No momento em que os vemos tão indefesos, aqueles homens, mulheres e as crianças, desembarcando dos botes ou navios e sendo recebidos como mercadorias indesejadas (seriam estragadas?), já sabemos também que serão devolvidos tão logo os governos cumpram os processos de recebimento a contragosto; diante disso, pensamos que talvez melhor teria sido para eles serem tragados pelo mar e comidos pelos animais marinhos como tantos de seus compatriotas o foram.
Enquanto escrevo esse inútil texto, muitos deles devem estar agora mesmo na Líbia, Síria ou em qualquer outro país devastado por guerras internas, embarcando em navios, se aventurando em qualquer tipo de transporte perigoso com suas trouxas e suas crianças e eles não podem ter medo de se aventurar nisso porque o ‘não lugar’ no qual nasceram também não se interessa – nem nunca se interessou – por suas existências.
Essas pessoas são como os animais atropelados que vemos nas rodovias: não queremos enxergá-las, nos recusamos, mas bem sabemos que todos os carros que passarem por ali, depois do nosso, vão destroçá-las centenas de vezes.
E nada fazemos ou podemos fazer de prático e imediato.
E me pergunto inutilmente: o que será dessas pessoas? Desses nossos iguais que ninguém quer por perto? Porque os governos dos países ricos nada fazem por eles? Sim, há questões diplomáticas, há as guerras – sempre as guerras – em seus próprios territórios; há aquele tipo de burocracia que emperra tudo e sabemos que em casos como esses, não há lugar para tolas utopias: de que forma os governos dos países ricos poderiam acolher essas pessoas? Que tipo de tratado, lei ou documento diplomático (nem sei se é correto escrever dessa forma) poderia, finalmente, conceder a essas pessoas algum tipo de asilo, acolhimento, uma maneira, enfim, de dar a elas um lugar no qual elas possam simplesmente viver a vida que pertence a elas por direito?
Como você e eu, elas também têm o mesmo direito de estarem no mundo hoje… Ou não?
Porque isso é negado a elas de forma tão odiosa, revoltante, indigna e de uma forma que deixa em todos nós um pleno sentimento de fracasso, vergonha e incompetência? Pois é exatamente assim que me sinto porque sei que a linha que separa a minha (nossa) existência e a deles é invisível, pois somos todos humanos, afinal de contas.
(fonte: http://www.babelcultural.com/revista/eles-e-nos/)

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