domingo, 1 de novembro de 2015

Literatura e História



Antônio de Paiva Moura

O positivismo, com sua ampla influência engessou a narrativa história. Pretendia uma terminologia específica a pretexto de uma maior cientificidade. Com isso a história perdeu de vista suas origens na imaginação literária.  Para historiadores modernos o valor da literatura reside em suas predisposições a explorar o movimento da linguagem e da significância social, política e pessoal. (KRAMER, 1995). 


 A literatura é documento histórico, pois corre em sintonia com os momentos históricos. Ficher (1987) esclarece a ligação entre a história e a literatura, dizendo que o escritor revela o mundo em que ele vive. O que é histórico e o que é social não pode estar ausente da obra de arte. Nesse sentido, vale lembrar “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Marques, que com narrativa ficcional, redunda em excelente documentário histórico.

Kant achava que tanto os sentidos quanto a razão eram muito importantes para a nossa experiência de mundo. Os racionalistas atribuíam uma importância exagerada à razão. Nunca seremos capazes de saber com toda a certeza, como as coisas são em si. Só podemos saber como elas se mostram a nós e como são percebidas pela razão. Os tratados teóricos e pesquisas nas ciências sociais tendem à redução do social ao objetivo. O conhecimento produzido pela literatura parte da subjetividade para entender o mundo pela sensibilidade.


O conto “A terceira margem do rio”, da obra “Primeiras estórias”, de Guimarães Rosa é narrado em primeira pessoa pelo personagem central. Os personagens são designados somente pelo grau de parentesco, como pai, mãe, irmão, irmã, tio e sobrinho. O pai, sempre calado, resolve fazer uma canoa, na qual foi passar os dias restantes de sua via, abandonando a família. Tudo é incógnita para o narrador solitário: a dificuldade para se compreender a vida; a terceira margem intocável, invisível, desconhecida. É bom lembrar que houve em Minas um surto migratório ao longo do século vinte, que provocou a desintegração das famílias, razão pela qual o narrador acaba vivendo sozinho, no mesmo lugar que havia nascido. O inconsciente coletivo expressa, a seu modo, o medo, a incerteza, o sofrimento mental dos sertanejos. Guimarães Rosa conseguiu passar ao leitor esse drama social através da fala de seu personagem fictício e anônimo.

Em 1992, a antropóloga mineira Núbia Pereira de Magalhães Gomes, da Universidade Federal de Juiz de Fora, publicou um trabalho intitulado “Mundo encaixado”, no qual objetivava a significação da cultura popular tradicional. Para tal, passou longo tempo na comunidade Mata do Tição, município de Jaboticatubas MG, ouvindo as histórias dos moradores e seus modos de vida. Essa obra, de alta qualidade científica, além de ter sido pouco lida, muito cedo caiu no esquecimento dos estudiosos.

Já Guimarães Rosa mostrou que a leitura de seus contos é também outra maneira de compreender seu tempo e o que realmente se passa, porque a literatura lida com a história por meio da memória e da experiência, com sensibilidade e razão, chegando onde a ciência não consegue chegar.

Em 2015 foi lançado o amplo e rico trabalho historiográfico de Luis Santiago sobre o caráter político da violência. “O mandonismo mágico do sertão: corpo fechado e violência política nos sertões da Bahia e Minas Gerais” (1851-1931). O longo título da obra indica sua ampla abrangência espacial e temporal, bem como a amplidão da matéria. O corpo fechado e o carisma dos personagens levam o autor a lidar com aspectos subjetivos na verdade histórica. Mas o que cativa o leitor nessa vasta obra é a forma de Luis Santiago contar histórias, usando fontes inéditas para historiadores, como ele mesmo diz:


O estudo dos conflitos políticos, na região mineira do São Francisco, contou com um padrinho de peso, o ficcionista João Guimarães Rosa. O romance “Grande sertão: veredas” mostra como nenhum outro trabalho, as especificidades da política sertaneja.

A condução teórica e metodológica da pesquisa de Luis Santiago insere as guerras entre potentados e mandões na esfera econômica e política, abordagem pouco explicita em outros trabalhos similares. Por isso e por muito mais, quem começa a ler “O mandonismo mágico”, só para quando chega ao fim.


FICHER, Ernest. A necessidade da arte. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

KRAMER, Lloyde S. Literatura crítica e imaginação histórica. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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