Defender a Vale ou a atividade
minerária, alegando serem “vitais para o país”, revela um romantismo
desenvolvimentista e nacional-provinciano
Por Maria Orlanda Pinassi1
Hoje não há sentido em falar em desenvolvimento geral da produção
associado à expansão das necessidades humanas.
Assim, dada a forma em que se realizou
a deformada tendência globalizante do capital–
e que continua a se impor –, seria suicídio
encarar a realidade destrutiva do capital
como pressuposto do novo e absolutamente necessário
modo de reproduzir as condições sustentáveis da existência humana.
associado à expansão das necessidades humanas.
Assim, dada a forma em que se realizou
a deformada tendência globalizante do capital–
e que continua a se impor –, seria suicídio
encarar a realidade destrutiva do capital
como pressuposto do novo e absolutamente necessário
modo de reproduzir as condições sustentáveis da existência humana.
István Mészáros. Século XXI – socialismo ou barbárie
Os casos de Nova Lima (2001), Cataguases
(2003) e Miraí (2007), na Zona da Mata, e de Itabirito (2014), todos
ocorridos em Minas Gerais, deram a Mariana (2015) o protagonismo de uma
tragédia anunciada. Mas, até então, o que conhecíamos nós sobre
barragens de contenção de rejeitos (altamente tóxicos) da atividade
minerária? Por que nos interessaria saber que várias dessas barragens
seguem funcionando normalmente apesar dos sérios riscos de
desestabilização estrutural que oferecem? E que MG, reproduzindo e
ampliando uma realidade que é nacional, possui apenas quatro fiscais
para monitorar suas 735 barragens destinadas a tais fins?
Tragédias com essa magnitude costumam
revelar segredos empresariais criminosamente omitidos das populações
direta e indiretamente atingidas por suas atividades. E o Estado,
articulado com o capital em todas suas esferas de ação (federal,
estadual, municipal), é o cúmplice ativo destes crimes de lesa
humanidade porque seus órgãos de fiscalização sofrem de uma deficiência
crônica e proposital e porque não são poucas as artimanhas que cria para
penalizar intervenções pequenas ao mesmo tempo em que facilita e
agiliza a emissão de “licenciosidades” ambientais para projetos de
vulto.
O rompimento do dia 5 de novembro último liberou 65 milhões de metros cúbicos de rejeitos2
que seguiram pelos 880 km dos cursos dos rios Gualaxo do Norte, do
Carmo e Doce, atingindo os estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo,
Bahia, envenenando praias, mar, manguezais, santuários ecológicos. Os
testas-de-ferro da Samarco, subsidiária do consórcio formado pela
australiana BHP-Billiton e pela Vale Internacional, empresa responsável
pelos eventos relatados, negam-se a assumir a responsabilidade pelo
episódio e pela presença de metais pesados no material liberado. Mas
análises preliminares constataram que o nível de toxicidade da lama,
contaminada por manganês, alumínio, zinco, arsênio – por toda a tabela
periódica – estaria um milhão e trezentos mil por cento acima do limite
tolerável. As imagens devastadoras a que assistimos desde a tragédia e
as incertezas que pairam sobre o futuro das áreas e pessoas expostas à
lama corrosiva não precisam de legendas, nem explicações.
O arremate da tragédia de Mariana se deu
com o cinismo em fornecer água com querosene para as famílias afetadas
em Governador Valadares. O desdém é mantido com a represália das duas
maiores mineradoras do mundo às sanções impostas pela justiça que
envolvem o bloqueio de bens e a paralisação das atividades naquela mina
de ferro. Alegam, por isso, não terem recursos para prestar qualquer
assistência à população afetada, para recuperar os danos socioambientais
causados e nem mesmo para pagar os salários dos seus próprios
funcionários, ameaçados de demissão a partir de 31 de janeiro de 2016.
Flagelos da mineração ocorrem em todo o
país a todo instante e envolvem um espectro muito maior de processos
predatórios. Estima-se que cerca de dois mil municípios brasileiros
desenvolvam atividades dessa natureza pelas quais recebem o CFEM –
Compensação Financeira pelos Recursos Minerais. Conforme o MAM –
Movimento dos Atingidos pela Mineração, estima-se ainda que o Brasil
possui oito mil minas de exploração mineral e que para cada uma delas
exista uma barragem de rejeitos mais ou menos letais. Em Parauapebas,
município do sudeste paraense que sedia a maior reserva de ferro a céu
aberto do mundo (o Projeto Carajás3),
apenas uma dessas instalações, se rompida, tem potencial para despejar
muita, mas muita lama tóxica no rio Parauapebas que é afluente do rio
Itacaiúnas que é afluente do rio Tocantins que é afluente do rio Pará
que, por sua vez, deságua no Oceano Atlântico.
Imensuráveis impactos sociais e
ambientais são e deverão ser sentidos com ainda maior intensidade. Por
exemplo, em toda cadeia produtiva do ferro, cobre e ouro, minérios cada
vez mais vitais à lógica da produção destrutiva4,
do consumismo industrial e individual irresponsável, da obsolescência
programada e do desperdício generalizado. Pois, para atender aos
interesses deste tipo de desenvolvimento do capital, crateras
gigantescas são abertas, florestas nativas desmatadas, rios assoreados e
o monocultivo de eucalipto põe o agronegócio no circuito para fornecer
carvão para os fornos das siderúrgicas. Um sem-número de hidrelétricas,
hidrovias, ferrovias e transposição de rios geram a energia demandada e
as vias de escoamento da produção. Atrás de tudo, fica um rastro de
destruição da fauna, da flora e da vida de comunidades inteiras de
indígenas, quilombolas e camponeses. Cidades experimentam forte explosão
demográfica sendo inexoravelmente afetadas por miséria, fome,
prostituição infanto-juvenil e pela péssima qualidade da água
proveniente de rios poluídos.
Tão grave quanto é constatar que nos
territórios controlados pela atividade minerária é recorrente a
incidência de trabalho escravo, de trabalho infantil e de doenças
laborais irreversíveis entre trabalhadores da própria empresa e,
principalmente, entre terceirizados, quarteirizados etc. Nestes locais
cresce a violência militar e paramilitar sobre as populações vulneráveis
que ousam insurgir-se contra as degradações impostas a elas pelo
capital e pelo Estado. Para se ter ideia, na mesma região sul e sudeste
do Pará, que testemunhou algumas das mais bárbaras chacinas políticas do
país, como a repressão à Guerrilha do Araguaia e o massacre de Eldorado
de Carajás5,
e que mantém uma sinistra tradição de extermínio de lutadores
populares, a CPT denuncia que, somente no ano de 2015, surgiram 125
focos de conflitos de terra com grande possibilidade desse número se
ampliar para 181. Onze trabalhadores foram assassinados e 29 outros
figuram nas listas dos ameaçados de morte. Os fatos exigem que o Estado
ative e execute o programa de proteção às pessoas que “vivem” nestas
condições.
A Vale, que ironicamente um dia foi do Rio Doce,
carro chefe do desenvolvimento e da (in)segurança nacional desde
Getúlio, deu saltos decisivos durante a ditadura, foi privatizada por
FHC a troco de tostões, transnacionalizada e estratosfericamente
valorizada no mercado de ações. Dos governos do PT recebeu enormes
incentivos fiscais e uma linha de crédito direta do BNDES – a Valepar –
para incrementar seus negócios, um dos quais é potenciar a vocação
brasileira de fornecer matéria prima para o primeiro mundo, lógica em
que exporta ferro para a produção de armamento do complexo industrial
militar dos EUA, China e Israel. O Movimento Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale
vem denunciando, desde 2010, o modo imperativo com que esta empresa
explora os recursos naturais e humanos no Brasil e outros 30 países nos
quais atua. Por onde passa, conduz com êxito a estratégia de subjugar e
controlar governos nacionais, independentemente dos indivíduos e dos
partidos que os ocupem.
Neste quadro, as multas que aqui e acolá
a Vale é obrigada a pagar são gorjetas perto de seus lucros
astronômicos. As ameaças de penalização mais severa sobre o setor fingem
uma soberania inexistente do público frente ao privado, de uma
autonomia ilusória da política em relação aos interesses econômicos. E,
ainda, os aconselhamentos para que se imponha uma maior regulamentação
sobre a atividade minerária caem na reserva moral dos crédulos ou
desatentos à forte movimentação no sentido da aprovação do Código da
Mineração que constituirá certamente enorme impulsionador à produção do
setor. A aplicação dos itens constantes da Agenda Brasil e da Lei
Antiterrorismo, adequações de nossa política interna às exigências do
TISA6,
do qual não somos signatários mas dependentes, irá garantir que o
capital da Vale e de tantas outras transnacionais se agigante, sem
qualquer limite humano, social, ambiental ou nacional no horizonte.
É assim que, para além de todas as
evidências ameaçadoras da mineração, importantes intelectuais das
esquerdas e líderes de expressivas organizações populares continuam a
defender a ideia de que se trata de uma atividade vital para o
desenvolvimento e a soberania do país.
Ora, que padrão de desenvolvimento é
esse que, apesar de pôr em risco a existência da humanidade, resiste no
romantismo desenvolvimentista nacional-provinciano?
Ir à raiz deste necessário
questionamento é ir na direção de uma ruptura absoluta com o sistema de
produção destrutiva que preside a atividade minerária com
características tão flagrantemente perigosas à vida. Por isso mesmo não
se pode crer que a solução para os negócios nefastos da Vale seja sua
reestatização, nem a renacionalização dos seus buracos, da sua lama e
seus estragos. Em benefício do nosso futuro, o desafio da luta
efetivamente popular deve ser pela sua absoluta erradicação e,
principalmente, pela erradicação do padrão societário que a torna tão
necessária.
–
1 Esse
texto foi escrito com a colaboração de Raimundo Gomes da Cruz Neto,
educador popular do CEPASP – Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria
Sindical e Popular, Marabá, PA e Célia Congilio, professora de Ciência
Política da UNIFESSPA, Marabá, PA.
2 [Nota da edição de Outras Palavras] Para efeito de comparação, vale lembrar que o volume de lama tóxica liberada equivale a 1/3 da água
hoje disponível (192 milhões de metros cúbicos em 1º/12/15) no
reservatório da Cantareira, que abastece todos os dias 5 milhões de
pessoas em São Paulo
3 “Na
implementação do projeto Carajás, a meta de exploração imposta pelos
militares foi de 10 milhões de toneladas métricas de minério-ano. Essa
produção passou nos anos 1990, principalmente após a privatização [da
Vale] para 109 milhões de toneladas anuais. Com a efetivação do projeto
S11D esse montante passará a 230 milhões de toneladas anualmente”. Elementos constitutivos do MAM. Iguana Editorial, 2015 (p.17)
4 A produção de ferro cresceu 37% nos últimos três anos em Mariana, MG.
5 Em
abril de 2016, o Massacre de Eldorado dos Carajás completa 20 anos sem
que aqueles dezenove assassinatos e outras tantas sequelas físicas e
psicológicas que marcaram definitivamente os sobreviventes tenham
encontrado a justiça exigida.
6 Ver a respeito https://wikileaks.org/tisa/ e http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/tisa-a-pior-ameaca-aos-servicos-ja-vista-5750.html
(fonte: http://outraspalavras.net/brasil/brasil-hora-de-repensar-a-mineracao/)
(fonte: http://outraspalavras.net/brasil/brasil-hora-de-repensar-a-mineracao/)
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