Agora eu não sou mais Charlie
Hebdo. Eu sou um refugiado sírio, eu sou um muçulmano perseguido, eu sou
um norte-africano afogado no Mediterrâneo, um judeu em Auschwitz, um
africano escravizado, um índio desaparecido em nome da Conquista
europeia, uma criança vietnamita bombardeada com napalm nos anos 60 ou
setenta, etc… Um menino morto na praia onde ele deveria brincar.
Mas Charlie Hebdo eu não sou mais.
Quando
houve o atentado contra a redação do Charlie Hebdo, perpetrado por uma
quadrilha de fanáticos que agiam em nome de uma visão completamente
destorcida do Islã, eu e minha esposa saímos aqui nas ruas de Berlim,
portando na lapela, com luto e orgulho, a divisa, “Ich bin Charlie
Hebdo”, “Eu sou Charlie Hebdo”.
A
loja vizinha, de amáveis quinquilharias, de propriedade de um sírio,
pusera na porta, em destaque, uma bandeira francesa. Não sou amigo de
bandeiradas nacionalistas, mas aquilo era muito diferente, muito mais do
que isto, era uma homenagem ao luto diante da estupidez do ato
perpetrado, que incluía um ataque covarde a um supermercado de produtos
judaicos.
Mas Charlie Hebdo eu não sou mais.
Tenho
visto e já escrevi sobre a paranoia histérica que vem tomando conta da
Europa depois desta série de atrocidades - não vamos brincar com isto -
cometidas, tomando o nome de Alá em vão. Se os terroristas perpetradores
destes crimes lesa-humanidade pensam que serão recebidos no Paraíso,
espero que se dêem conta do que na realidade fizeram ao arderem no
mármore do inferno pela eternidade.
Mas Charlie Hebdo eu não sou mais.
A
histeria paranoica piorou muito desde o “arrastão sexual” perpetrado
por um milhar de energúmenos embriagados no Hauptbahnhof de Colônia, na
Alemanha, atacando covardemente mulheres indefesas com todo o tipo de
ofensa, que foram do roubo de celulares ao estupro. Agiam em nome de
Alá? Foram descritos como “de aparência árabe ou norte-africana”. Não
duvido. Mas a raiz deste comportamento não é islâmica, não é o Corão. A
raiz é o descaso com que a juventude é tratada nas nossas metrópoles
ocidentais. Isto justifica a barbárie que cometeram? De jeito nenhum.
Existem milhões de jovens que são tratados com o mesmo descaso e que
reagem de modo inteiramente diferente, construindo vidas próprias
distantes destes ensurdecimentos ou fanatismos, entregando-se a
militâncias generosas em nome da tolerância, da igualdade, da
fraternidade, humanidade, da solidariedade, é bom não esquecer este
conjunto de palavras, ou simplesmente em busca de uma vida decente e
digna.
Mas Charlie Hebdo eu não sou mais.
O
cruel massacre dos jornalistas do Charlie Hebdo deixou cicatrizes. Mas a
gente sabe que uma cicatriz pode ser tanto a lembrança da superação de
uma ferida, como também a permanência da Marca da Maldade, assim com
maiúscula, como no imortal filme de Orson Welles. Agora a equipe do
Charlie Hebdo cedeu diante da Marca da Maldade. Covardemente, atacaram
uma criança. Mais covardemente, atacaram uma criança morta. Quem não se
lembra das fotos do Pequeno Aylan, de bruços, tendo como leito de morte
uma praia onde ele deveria brincar? E aí o desenhista do CH, embriagado
por um sentimento aparente de ironia, mas na verdade de profunda
xenofobia, faz uma “piadinha”, perguntando, o que seria dele, se tivesse
sobrevivido. E completa com a pseudocharge, onde o adulto resultante
tem, inclusive, um nariz de porco na imagem, que ele teria se
transformado num “beliscador de bundas na Alemanha”.
Decididamente, não sou mais Charlie Hebdo.
Isto
faz o serviço para as Marine Le Pen, as Front Nationale, as Pegidas
alemãs, os neonazis de todo lado, os fascistas da Ucrânia, os
reacionários da Polônia, os governantes idiotas que dizem estupidamente
que seus países só receberão “refugiados cristãos” (dá vontade de
perguntar: quer dizer que os judeus também não têm vez?), os
antissemitas da Hungria, os canalhas no mundo inteiro que se valem das
histerias estimuladas pelo sensacionalismo curto e grosso de mídias
semeadores da idiotice.
Charlie Hebdo, adeus. Adeus, Charlie Hebdo.
Como
já disse, eu agora me chamo Aylan, me chamo refugiado, me chamo
muçulmano, me chamo tudo, menos esta profanação da memória de um
inocente.
Liberdade
de expressão é uma coisa. Desfaçatez, desrespeito, grossura, idiotice,
covardia, canalhice para vender mais um exemplar a mais, é outra. Isto
se chama jornalismo selvagem. Aliás, capitalismo selvagem.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Agora-eu-nao-sou-mais-Charlie-Hebdo/6/35326)
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