Os mais indignados com atentado contra “nossas mulheres” em
Colônia são aqueles que, nos outros 364 dias do ano, acham que elas são
pedaços de carne, a ser usadas segundo a vontade dos machos
Por Nuno Ramos
Vivemos num mundo hipócrita de meias-tintas. A Amazon alemã
comercializou, com grande sucesso, um CD com o hino do Pegida (Europeus
Patriotas contra a Islamização do Ocidente), organização racista alemã. O
fato provocou escândalo e protestos de alguns consumidores. Receando o
efeito comercial da questão, a empresa multinacional resolveu comunicar
que ia dar uma percentagem dos seus lucros nessa venda para apoio aos
refugiados. Se o exemplo frutifica, teremos as empresas que fabricam
bombas a dar uma percentagem simbólica dos seus lucros milionários às
vítimas de mais de dez anos de bombardeamentos no Oriente Médio, que já
mataram, só no Iraque, milhões de pessoas.
O mesmo mecanismo de hipocrisia funcionou com a polícia alemã, que
pouco fez em relação a uma multidão que roubava e agredia sexualmente
mulheres em Colônia, e que manteve esse crime escondido no congelador
porque parte dos seus autores seriam indivíduos que requeriam o estatuto
de refugiado na Alemanha.
A ideia de que uma vítima de bombardeamento é necessariamente uma boa
pessoa é simplesmente imbecil. O laxismo das autoridades revela uma má
consciência ocidental que está mal dirigida: os países que mandam no
mundo deviam abster-se de tentar impor o seu regime liberal a golpes de
míssil, nos países do Terceiro Mundo; não deviam colaborar com ditaduras
e regimes fundamentalistas, como a Arábia Saudita; e deviam deixar de
ser permissivos e laxistas com determinados crimes.
Lamento desiludir os racistas, mas os crimes sexuais não se esgotam
nos refugiados muçulmanos. Mulheres bósnias muçulmanas foram alegremente
violadas por croatas e sérvios que eram cristãos (católicos e
ortodoxos) sem que a sua suposta boa-fé os tivesse impedido de massacrar
e violar. Há muitos bispos da Igreja Católica acusados de violar
crianças. Existem milhares de crimes sexuais por toda a Europa que não
escolhem raça nem preferência religiosa. Têm apenas uma coisa em comum:
são perpetrados por gente que odeia as mulheres e acha que elas são
objetos para serem usados a seu bel-prazer.
O mais fascinante do assunto é que as pessoas que mais se indignaram
com o atentado contra “as nossas mulheres”, em Colônia, são aquelas que,
nos outros 364 dias do ano, acham que elas são pedaços de carne sem
cérebro, próprias para serem usadas segundo a vontade dos machos. A
jornalista alemã Sabrina Hoffmann, responsável das redes sociais, a
propósito do sucedido na Alemanha recenseava algumas declarações
educativas sobre os dias normais e comentários habituais nas redes
sociais:
“Bom, se elas vestem calças justas e um top, estão pedindo”; “As
garotas de 15 anos são perfeitamente conscientes do impacto que têm no
sexo oposto. Não são nada inocentes”; “Se realmente violaram uma mulher,
lamento muito, mas onde começa a violação?”, e outras declarações com o
mesmo grau de inteligência.
Ora, um crime não lava outros crimes, apenas nos permite perceber
melhor a razão do sucedido e as formas de impedir que venha a
repetir-se. O excelente jornalista João Carlos Barradas escreveu um
artigo que coloca algumas questões importantes: “Entre os migrantes
chegados à UE contam-se essencialmente homens (66% dos registros de
entradas em 2015 na Grécia e Itália), mais de 20% são menores não
acompanhados e, entre eles, 90% do sexo masculino. Uma migração
predominantemente masculina e juvenil, além de degradar ainda mais o
estatuto das mulheres nas sociedades de origem e limitar hipóteses de
reunião familiar, é fator de assinalável distorção das proporções de
homens e mulheres entre jovens adultos nos países de acolhimento.” É
preciso combater em toda a gente, e nos refugiados, culturas que
menosprezem a mulher. É preciso castigar os criminosos. Mas sobretudo é
necessário impedir que tenhamos um mundo a duas velocidades: um espaço
fechado, com condições, e uma selva bombardeada para 90% da população.
A solução do problema dos refugiados passa por normalizar a vida nos países de origem.
Nesta mesma Alemanha onde houve os crimes de Colônia, a polícia
distribuiu a crianças refugiadas lápis de cor e papel para elas
desenharem. Um deles, oferecido a um policial por uma menina, tinha uma
família em fuga retalhada pelas bombas, com uma mãe a esvair-se em
sangue, e um agradecimento a quem a acolheu. É preciso não fechar os
olhos a nada.
(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/homens-que-odeiam-mulheres/)
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