sábado, 30 de janeiro de 2016

Homens que odeiam mulheres

Os mais indignados com atentado contra “nossas mulheres” em Colônia são aqueles que, nos outros 364 dias do ano, acham que elas são pedaços de carne, a ser usadas segundo a vontade dos machos
Por Nuno Ramos

Vivemos num mundo hipócrita de meias-tintas. A Amazon alemã comercializou, com grande sucesso, um CD com o hino do Pegida (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), organização racista alemã. O fato provocou escândalo e protestos de alguns consumidores. Receando o efeito comercial da questão, a empresa multinacional resolveu comunicar que ia dar uma percentagem dos seus lucros nessa venda para apoio aos refugiados. Se o exemplo frutifica, teremos as empresas que fabricam bombas a dar uma percentagem simbólica dos seus lucros milionários às vítimas de mais de dez anos de bombardeamentos no Oriente Médio, que já mataram, só no Iraque, milhões de pessoas.

O mesmo mecanismo de hipocrisia funcionou com a polícia alemã, que pouco fez em relação a uma multidão que roubava e agredia sexualmente mulheres em Colônia, e que manteve esse crime escondido no congelador porque parte dos seus autores seriam indivíduos que requeriam o estatuto de refugiado na Alemanha.

A ideia de que uma vítima de bombardeamento é necessariamente uma boa pessoa é simplesmente imbecil. O laxismo das autoridades revela uma má consciência ocidental que está mal dirigida: os países que mandam no mundo deviam abster-se de tentar impor o seu regime liberal a golpes de míssil, nos países do Terceiro Mundo; não deviam colaborar com ditaduras e regimes fundamentalistas, como a Arábia Saudita; e deviam deixar de ser permissivos e laxistas com determinados crimes.

Lamento desiludir os racistas, mas os crimes sexuais não se esgotam nos refugiados muçulmanos. Mulheres bósnias muçulmanas foram alegremente violadas por croatas e sérvios que eram cristãos (católicos e ortodoxos) sem que a sua suposta boa-fé os tivesse impedido de massacrar e violar. Há muitos bispos da Igreja Católica acusados de violar crianças. Existem milhares de crimes sexuais por toda a Europa que não escolhem raça nem preferência religiosa. Têm apenas uma coisa em comum: são perpetrados por gente que odeia as mulheres e acha que elas são objetos para serem usados a seu bel-prazer.

O mais fascinante do assunto é que as pessoas que mais se indignaram com o atentado contra “as nossas mulheres”, em Colônia, são aquelas que, nos outros 364 dias do ano, acham que elas são pedaços de carne sem cérebro, próprias para serem usadas segundo a vontade dos machos. A jornalista alemã Sabrina Hoffmann, responsável das redes sociais, a propósito do sucedido na Alemanha recenseava algumas declarações educativas sobre os dias normais e comentários habituais nas redes sociais:

“Bom, se elas vestem calças justas e um top, estão pedindo”; “As garotas de 15 anos são perfeitamente conscientes do impacto que têm no sexo oposto. Não são nada inocentes”; “Se realmente violaram uma mulher, lamento muito, mas onde começa a violação?”, e outras declarações com o mesmo grau de inteligência.

Ora, um crime não lava outros crimes, apenas nos permite perceber melhor a razão do sucedido e as formas de impedir que venha a repetir-se. O excelente jornalista João Carlos Barradas escreveu um artigo que coloca algumas questões importantes: “Entre os migrantes chegados à UE contam-se essencialmente homens (66% dos registros de entradas em 2015 na Grécia e Itália), mais de 20% são menores não acompanhados e, entre eles, 90% do sexo masculino. Uma migração predominantemente masculina e juvenil, além de degradar ainda mais o estatuto das mulheres nas sociedades de origem e limitar hipóteses de reunião familiar, é fator de assinalável distorção das proporções de homens e mulheres entre jovens adultos nos países de acolhimento.” É preciso combater em toda a gente, e nos refugiados, culturas que menosprezem a mulher. É preciso castigar os criminosos. Mas sobretudo é necessário impedir que tenhamos um mundo a duas velocidades: um espaço fechado, com condições, e uma selva bombardeada para 90% da população.
A solução do problema dos refugiados passa por normalizar a vida nos países de origem.

Nesta mesma Alemanha onde houve os crimes de Colônia, a polícia distribuiu a crianças refugiadas lápis de cor e papel para elas desenharem. Um deles, oferecido a um policial por uma menina, tinha uma família em fuga retalhada pelas bombas, com uma mãe a esvair-se em sangue, e um agradecimento a quem a acolheu. É preciso não fechar os olhos a nada.
(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/homens-que-odeiam-mulheres/)

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