Do Swiss Info
Por Mirela Tavares, São Paulo
Em
meio a uma das maiores crises política e econômica em que se encontra o
Brasil, a frase acima do advogado, jurista, escritor e professor
aposentado Fábio Konder Comparato serve de motivação. Ela se refere a
seus esforços e de outros brasileiros que incansavelmente tentam
contribuir para mudanças concretas em pró da democracia no País. Uma
luta que ele alerta ser difícil e demorada até porque, como salienta, a
democracia no Brasil nunca existiu na prática.
Sua
afirmação é sustentada por uma realidade histórica mantida, sob sua
ótica, nas mãos de uma dominação política e econômica oligárquica. E
exemplifica como isso torna claramente difícil, senão impossível, para o
povo exercer sua soberania, fator essencial para a democracia.
Seus
argumentos se tornam ainda mais fortes quando descortina manobras
políticas que se repetem em uma espécie de jogo contra das próprias
instituições. Pouco divulgadas pela grande imprensa, tais manipulações
de representantes públicos impedem as pessoas de entenderem e se
manifestarem eficientemente contra um sistema que só aumenta essa
concentração de poder.
Ainda
assim, ele não esmorece na busca de soluções. Entre elas, atua
fortemente em projetos como o pela iniciativa popular (direito dos
cidadãos de proporem projetos de lei para a apreciação do Poder
Legislativo) e a disseminação de massa de informações claras sobre
política e economia. Para ele, romper a barreira do desconhecimento do
que está por trás de certas ações dos poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário é um passo fundamental para esclarecer a população, jogando
luz sobre o que são práticas democráticas e buscando de fato a soberania
do povo brasileiro.
swissinfo.ch: Qual a realidade da crise política e econômica do Brasil e como está relacionada à democracia do País?
Fábio Konder Comparato:
Estamos com a probabilidade de um colapso econômico, o que certamente
repercute muito fortemente no campo político. Este cenário é resultado
de uma fase de desindustrialização em que entrou o Brasil e, com isso,
de não crescimento econômico. Teremos este ano e certamente o ano que
vem dois anos de recesso econômico, ou seja, de crescimento negativo.
Isso só ocorreu na história do Brasil nos anos de 1930 e 1931, em
consequência da crise de 1929. Então, precisamos saber qual é a causa
disso. A meu ver a causa está no fato de a classe dominante atual não
ser mais composta de industriais, e sim de banqueiros. Os banqueiros, ou
melhor, o próprio sistema financeiro não é produtor de riquezas; quando
muito auxilia a produção do crescimento econômico. O que acontece
também é que a mentalidade dominante, não só no Brasil, mas no mundo
inteiro, é de ganhar dinheiro com especulação financeira ou simplesmente
com investimentos em papéis que dão renda. Os antigos industriais se
transformaram em rentistas. Estamos passando da fase do capitalismo
industrial para a do capitalismo financeiro.
swissinfo.ch: Um caminho que parece irreversível?
FKC:
Isso não vai ser resolvido pelo Brasil. Tem de ser decidido e mudado no
mundo todo. Mas com o provável colapso econômico no País, vai se tentar
uma mudança superficial no campo poliítico: sai fulano, entra beltrano;
faz-se outra coligação partidária etc. Mas isso não muda a origem da
doença, que é o fato de que a classe dominante, composta de banqueiros,
não tem condição de mudar a regra do jogo.
swissinfo.ch: O que o cidadão comum pode fazer para tentar mudar essa realidade?
FKC:
Nós temos que procurar mudanças institucionais. É por isso que faço
parte de um pequeno grupo de advogados, juristas, economistas e
cientistas políticos, que decidiu entrar em contato com alguns deputados
federais para tentar abrir uma fresta, um buraco nessa muralha
oligárquica, que existe desde sempre entre nós. Nossa oligarquia é
composta de potentados econômicos privados, intimamente associados aos
principais agentes estatais.
swissinfo.ch: Esse cenário já não é resultado da falta de conhecimento das pessoas sobre os próprios direitos?
FKC:
Podemos conhecer nossos direitos, mas não podemos exigir o cumprimento
deles, porque tudo depende de um poder de dominação; poder, como eu
disse, composto de potentados econômicos privados, ou seja, de grandes
empresários, agora sobretudo do sistema financeiro e dos principais
agentes estatais, tanto do Legislativo, quanto do Executivo e do
Judiciário.
swissinfo.ch: Como está atuando nesse grupo do qual mencionou?
FKC:
Entramos em contato com a deputada Luiza Erundina, que reuniu em
Brasília cerca de 30 deputados federais, ocasião em que expus a ideia de
que precisamos deixar de cuidar apenas dos sintomas econômicos e
políticos para tratar a doença na sua causa principal, que é a dominação
oligárquica e a desigualdade social.
swissinfo.ch: É possível mudar?
FKC:
Sim, mas obviamente não é uma mudança a ser feita da noite para o dia.
Vai levar muito tempo, sobretudo porque é preciso atuar sobre a opinião
pública, que ignora tudo isso e é permanentemente deformada pelo poder
ideológico exercido pelos líderes capitalistas. Numa sociedade de
massas, como a atual, a opinião pública sofre a influência decisiva dos
meios de comunicação de massa. Estima-se que o tempo médio de
acompanhamento de televisão no Brasil é de três horas diárias. Então,
veja: a grande imprensa, o rádio e a televisão estão nas mãos de quem?
De empresários e políticos. Há um número considerável de políticos que
têm rádios locais, ou então estão ligados a redes de televisão, o que
chegou a ser denunciado pela Unesco em um relatório de 2010. Temos de
tentar, como eu disse, abrir brechas nessa muralha, o que requer
projetos de lei específicos.
swissinfo.ch: Poderia exemplificar?
FKC:
Foi aprovado por unanimidade, no Senado Federal, um projeto de lei que
regula o direito de resposta no rádio e na televisão. Ele foi para a
Câmara dos Deputados, onde o Presidente Eduardo Cunha vem impedindo a
sua tramitação regular. Ele mesmo disse que só se conseguirá aprovar na
Câmara um projeto de lei sobre meios de comunicação social, passando por
cima do seu cadáver. Pois bem, esse grupo de 30 parlamentares vai
tentar desbloquear esse projeto, sem ter que passar, evidentemente, por
cima do cadáver do Cunha. Outro ponto importante diz respeito à
iniciativa popular legislativa. Até hoje nenhum projeto de iniciativa
popular foi aprovado no Congresso Nacional. Fala-se muito do projeto de
Ficha Limpa para as candidaturas ao Congresso, mas ele não foi aprovado
como projeto de iniciativa popular. Ele acabou sendo transformado em
projeto de lei de alguns deputados.
swissinfo.ch: Por quê?
FKC:
Por uma exigência absurda, imposta pela direção da Câmara dos
Deputados: a conferência de todas as assinaturas. Veja, nós temos hoje
cerca de 150 milhões de eleitores. A Constituição exige que o projeto de
iniciativa popular seja apresentado por 1% do eleitorado, o que perfaz,
em boa matemática, 1,5 milhão de eleitores. Ora, a Câmara dos Deputados
não tem organização para fazer a conferência de 1,5 milhão de
assinaturas, nem em um ano ou mesmo dois. Por isso que estou preparando
um anteprojeto de lei sobre iniciativa popular que dispense a
conferência de assinaturas.
swissinfo.ch: O povo, então, está engessado?
FKC:
É óbvio. Na verdade, temos duas constituições em vigor. Uma, oficial,
saudada como “Constituição-cidadã” e que é apenas uma fachada. Por trás
dela, vigora outra constituição pela qual os interesses dos grupos
dominantes são preservados. Por exemplo, a Constituição oficial prevê
como manifestações da soberania popular o referendo, o plebiscito e a
iniciativa popular. Já disse que a iniciativa popular é impossível,
porque os oligarcas impuseram a exigência de se conferirem todas as
assinaturas, exigência essa que não está na Constituição, nem na lei de
1998, que regula a matéria.
swissinfo.ch: Imposições que cerceiam o poder popular?
FKC:
Claro. O que se quer é mostrar para o mundo que somos um país
civilizado, dotado de uma constituição democrática, na qual se declara
que a soberania popular se manifesta, não só pela iniciativa direta de
leis, mas também por plebiscitos e referendos. Acontece que a
Constituição Brasileira, em seu artigo 49, inciso XV, declara ser da
competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e
convocar plebiscito. Os parlamentares, como sabido, se intitulam
representantes ou mandatários do povo. O mandatário, como ninguém
ignora, deve agir segundo a vontade do mandante. Mas o mandato político
que aqui vigora é sui generis, pois o povo mandante só pode manifestar
sua vontade, quando seus representantes o permitirem.
swissinfo.ch: E o povo está, de certa forma, alheio a isso?
FKC:
De que maneira a população se informa dos assuntos públicos?
Basicamente através do rádio e da televisão. Mas esses meios de
comunicação social são controlados neste país pelos grupos oligárquicos.
Então, o que podemos tentar fazer para superar esse impasse é uma
aliança com determinados blogs, como o "Conversa Afiada" do Paulo
Henrique Amorim, para que eles deem ao povo as informações sonegadas
pelos grupos que controlam os meios de comunicação de massa.
swissinfo.ch: O antigo problema dos meios de comunicação no País.
FKC:
A Constituição tem vários dispositivos importantes sobre meios de
comunicação social. O artigo 220, parágrafo 5º, diz que os meios de
comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de
monopólio ou oligopólio. Por outro lado, o artigo 221, inciso I,
determina que a produção e a programação das emissoras de rádio e
televisão deem preferência a finalidades educativas, artísticas,
culturais e informativas. A Constituição foi promulgada em 1988. Até
hoje, passados mais de um quarto de século, o Legislativo não
regulamentou isso. Então, em 2011, eu ajuizei no Supremo Tribunal
Federal, em nome de um partido político e de uma confederação nacional
de trabalhadores, uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Em 2011!
swissinfo.ch: Em que pé está isso?
FKC: Não está em pé nenhum. Está debaixo do braço da ministra Rosa Weber.
swissinfo.ch: Por que é tão difícil o cidadão exercer a prática democrática no Brasil?
FKC:
Exatamente porque o povo não tem poder nenhum. Qual é o poder do povo?
Eleger representantes? Todo mundo sabe que as eleições são decididas
pelo poder econômico, em ligação com os políticos profissionais.
swissinfo.ch: É bastante desanimador.
FKC:
Eu, porém, não perco a esperança. É preciso é conhecer a profundidade
da moléstia e saber como atuar. Por exemplo, o tal ajuste fiscal,
proposto pelo ministro Joaquim Levy, acabará por afundar ainda mais o
setor industrial. O que vamos propor ao grupo de deputados a que me
referi é chamar representantes da indústria e saber como é possível
relançar a industrialização do País. A partir daí, apresentar projetos
de lei, mas sabendo que os banqueiros, que são atual classe dominante,
estão ligados intimamente ao pessoal do Congresso, do Executivo e também
do Judiciário. Por exemplo, sobre a questão do financiamento
empresarial de campanhas eleitorais, a OAB entrou (em 2014) com uma ação
de inconstitucionalidade da lei que permite isso. Aberto o processo no
Supremo Tribunal Federal, seis ministros votaram pela procedência da
ação. Foi então que o Ministro Gilmar Mendes – quando a matéria já
estava decidida, pois o Supremo tem 11 ministros – pediu vista
antecipada dos autos, e o presidente do Supremo concedeu. O que ele fez?
Segurou os autos e não os devolveu até hoje. Coincidentemente, o
presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, logrou aprovar
irregularmente naquela Casa uma emenda constitucional, oficializando o
financiamento empresarial de campanhas eleitorais.
swissinfo.ch: Como se deu a manobra?
FKC:
Na primeira votação ele perdeu. O que diz a Constituição? Emenda
Constitucional rejeitada só poderá ser reapresentada na sessão
legislativa seguinte. Portanto, ele teria de esperar 2016. Contudo, no
dia seguinte à recusa dessa proposta de emenda constitucional, Cunha
apresentou outra do mesmo teor, manobrou e conseguiu sua aprovação em 24
horas. Então, 61 deputados entraram com um mandado de segurança no
Supremo, que foi distribuído para a Ministra Rosa Weber. Ela negou a
medida liminar de suspensão da tramitação na Câmara, deixando a
entender, com isso, que vai votar no mérito contra esse mandado de
segurança. Ora, se tudo isso fosse explicado para o povo, já seria um
enfraquecimento do poder oligárquico. Por que não sai a notícia nas
grandes redes de televisão, da imprensa e de rádio? Porque elas estão
nas mãos do grupo oligárquico.
swissinfo.ch: E aí voltamos para o motivo dessa entrevista, a questão da democracia brasileira.
FKC:
A nossa democracia não existe. Democracia é soberania do povo. O
soberano decide diretamente as grandes questões nacionais, como a
aprovação de uma Constituição e suas emendas, sem se limitar a eleger
representantes. Há até alguns países, como os Estados Unidos, onde em 15
Estados o eleitorado tem o poder de destituir aqueles que elegeu. É o
chamado recall.
swissinfo.ch: A Suíça também, mas há quem diga que a democracia só funciona lá por ser um país pequeno.
FKC:
Não é por isso. É pelo fato de que na Suíça existe uma classe média
tradicionalmente forte, não havendo a terrível desigualdade social que
sempre existiu no Brasil. Na Suíça, agora, é tradicionalmente a classe
média que tem a maioria e que decide em última instância sobre emendas à
Constituição, por exemplo. A Constituição Suíça desde sempre é de
democracia direta. Os povos daquela região se uniram em uma confederação
na qual os povos dos diferentes cantões decidem diretamente as grandes
questões de interesse geral.
swissinfo.ch: O que poderia ter sido feito também no Brasil?
FKC:
Claro. Não vale esse argumento de a Suíça ser pequena. O problema todo
do Brasil é que o povo nunca teve soberania. Quando é que começou
realmente o Estado do Brasil? Depois das capitanias hereditárias, que
eram feudos autônomos. Em 1549, chegou ao Brasil o primeiro Governador
Geral, Tomé de Souza, acompanhado de 1200 funcionários, civis, militares
e um punhado de jesuítas, liderados pelo Padre Manuel da Nóbrega. Ele
trouxe o Regimento Geral de Governo, que era uma espécie de
constituição. Tudo nele estava previsto. Nessa organização política
havia, porém, uma lacuna: não havia povo. A população indígena autóctone
não o formava, pois os índios não tinham direitos. Tampouco formava o
conjunto de cidadãos a massa crescente de escravos trazidos da África.
Ora, esses administradores que para cá vinham como representantes do rei
de Portugal só tinham um pensamento: enriquecer no Brasil e voltar em
seguida para a metrópole. E de que maneira senão aliando-se aos senhores
de engenho, aos grandes proprietários rurais ou então se tornando eles
próprios senhores de engenho, tendo parentes com testas de ferro. Isso
perdurou durante todo o Brasil Colônia.
swissinfo.ch: E continuou.
FKC:
Depois nos tornamos um país independente, dotado de uma Constituição do
mesmo nível das que vigoravam nos principais países europeus e nos
Estados Unidos. O esquema de governo, no entanto, continuou o mesmo. Os
grandes políticos, com o poder centralizado na Corte, o Rio de Janeiro,
permaneceram intimamente ligados aos coronéis do interior. E o povo?
Ora, o povo! O povo elegia seus representantes indiretamente até o final
do Império. Havia eleições em dois turnos. Primeiro, elegiam-se os
chamados grandes eleitores, os quais em seguida elegiam os membros da
Assembleia Geral do Império. O Senado não era composto de representantes
do povo, mas sim de pessoas nomeadas pelo Imperador. Aí, chegamos à
República, quando se estabeleceu basicamente o que existe até hoje: o
único poder do povo é eleger representantes no Legislativo e os chefes
de Executivo. A Constituição é feita pelos membros do Congresso
Nacional, cuja eleição é decidida, em sua quase totalidade pelo dinheiro
ou pelo poder político local. É por isso que precisamos começar por
demolir essa barreira oligárquica.
swissinfo.ch: O senhor tem exemplos práticos?
FKC:
Em 2004, eu apresentei em nome da OAB um projeto de lei regulando
plebiscito, referendo e iniciativa popular. Obviamente ele continua lá
na Câmara até hoje, sem ter sido votado. É por isso que estou insistindo
em iniciativa popular legislativa e no desbloqueio dos meios de
comunicação social. É indispensável, por exemplo, liberar o
funcionamento das rádios comunitárias. A Globo conseguiu, de início, que
a criação de rádios comunitárias fosse tipificada como um crime. Agora
essas rádios são permitidas, mas com tantas restrições que praticamente
não funcionam. Para mudar tudo isso, é preciso dar poder efetivo ao povo
e tentar demolir o poder ideológico exercido pela oligarquia através
dos meios de comunicação social. Mas, como eu disse, não é um trabalho
fácil, ou que se faça em pouco tempo.
(fonte: enviado por email pela leitora Sandra Araújo)
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