GILBERTO PUCCA*
Creio que não devemos relativizar a situação política que o Brasil
atravessa. Em poucos momentos da história do país enfrentamos situação
similar. Os governos Vargas e Goulart são os que mais se aproximam.
Subscrito pelo jornalista Paulo Henrique Amorim: “No Brasil há pouca
disposição de absorver governos trabalhistas”. Coisa que parecia
superada, a ruptura institucional volta à pauta em roupagem moderna.
Este clima fabricado produziu o pano de fundo da polarização de
posições. Tudo virou binário, ou se está desse lado ou se está do outro,
contra ou a favor, ladrão ou honesto, mocinho ou bandido.
A corrupção está no outro e, de preferência, no inimigo. Mediação,
inferência e análise, saíram de moda. Talvez por isso, literatura de
autoajuda esteja entre as mais consumidas. Não sei o que é causa ou
efeito. É a projeção do mundo ideal, produzido à luz das nossas verdades
e interesses individuais. Talvez Polônio, em Hamlet no século XVI tenha
sido o precursor da autoajuda do século XX: “Ser fiel a ti próprio e
seja feliz”. Porém Hamlet também explicita: “Há algo de podre no reino
da Dinamarca”, ou seja, a corrupção não está apenas nos outros, ela é
estrutural e pode estar também em nós, na educação que damos a nossos
filhos, na ultrapassagem pelo acostamento, em pagar uma conta a menos
sabendo que alguém errou, em comprar atestado de dentista para lançar no
Imposto de Renda. Ser binário é quase como escolher Paulo Coelho a
Shakespeare. O problema disso tudo é que a polarização interdita o
debate. As opiniões pré-fabricadas já estão prontas para ser atiradas
contra o inimigo, a racionalidade se assemelha ao Homem de Neandertal. A
polarização é terreno fértil para a intolerância, que, por sua vez, é a
mãe da violência. Nesse terreno, racismo, xenofobia, homofobia,
machismo são postos em prática, sem constrangimentos, e por muitas
vezes, em plataformas políticas encontrando ressonância. É por isso que
nesta conjuntura há grupos que chegam a defender o fim da democracia.
Viver em sociedade é um exercício de construção de mediações, e o
limite da defesa de posições deve ser a fronteira das liberdades
democráticas, individuais e coletivas e não podemos negociar com quem
tenta ultrapassá-las, seja quem for. Mas as forças vivas e democráticas
da sociedade precisam ter espaço para se expressar; se não há esse
espaço essas forças eclodem por outros meios. Um exemplo: as
manifestações de rua de 2013. Os estádios da Copa funcionaram como
estopim, tanto é que a primeira manifestação ocorreu horas antes do jogo
inaugural da Copa das Confederações, aqui em Brasília, no Mané
Garrincha. Menos do que a corrupção, as construções simbolizaram o
distanciamento entre obras esportivas e a necessidade de ampliação de
políticas públicas.
Diferente de agora, lá em 2013 não foi apenas a oposição que ocupou
as ruas. A sociedade pedia, em síntese, mais políticas públicas. No meu
modo de entender, belíssima bandeira. Não se contentavam mais com um SUS
meia boca, com a ampliação da educação que ainda não tinha chegado a
todos, com a grande inclusão no mercado formal de trabalho, mas também,
com a qualidade desse trabalho. A grande inclusão que houve de jovens
nas universidades qualificou inclusive as demandas, não bastava mais
estar na universidade, se exigia oportunidades iguais para todos. Isso
mobilizou todos os setores, das mais variadas matrizes ideológicas, da
esquerda à direita democrática. Sem dúvida, fundamentalistas,
alimentados e financiados até possivelmente pelo exterior, se
infiltraram, mas eram minoria. Mas o fato é que as forças de uma
sociedade, considerada até então pacata, eclodiu. O brasileiro não
aceitava tudo? Não éramos cordiais? Naquelas manifestações um dos
grandes rejeitados eram os partidos políticos, todos. Não era só o PT,
ou somente bandeiras vermelhas que eram reprimidas, eram também, as
azuis, pretas e amarelas. Proclamava-se que era a sociedade se
manifestando sem tutela.
O grito era claro, ninguém nos representa, nem os partidos. O
problema, é que, fora das premissas de Bakunin, quando construiu algumas
dos princípios do anarquismo ou do comunismo na sua utopia,
representações institucionais são necessárias, porque são elas, que
devem catalisar se não o consenso, mas as aspirações da maioria. Se não
existir esse canal de representação, os desejos, a vontade da sociedade
que se expressa em reivindicações, simplesmente se dispersam.
Lembro de uma conversa que tive com o vice-presidente da Câmara dos
Deputados, dias depois daquela noite de 21 de junho de 2013, quando mais
de 50 mil pessoas se concentraram em frente ao Congresso Nacional,
inclusive, depredando o Palácio do Itamaraty. Dizia o Deputado a época:
“Fui um dos parlamentares que ficou dentro do prédio aguardando para
tentar mediar o dialogo com os manifestantes que, inclusive, queriam
invadir. Convidamos uma comissão que os representasse, para recebermos,
tentar encaminhar as reivindicações, mas não conseguimos, pois não
tinham líderes”. Isso pode parecer alvissareiro, mas não acredito que
seja. Não podemos confundir líderes com ditadores ou usurpadores do
poder. Líderes congregam o desejo da maioria.
Sem representações como se materializam as reivindicações? Em uma
sociedade moderna, com quase 200 milhões de pessoas, como a brasileira,
democracia direta não é viável, logo se constrói a democracia
representativa. Mas este é o ponto, por mais óbvio que seja, a
democracia representativa tem que representar. E nós, cada um de nós, as
forças sociais no Brasil, sejam quais forem, se sentem representadas
pelos políticos atuais? Nosso sistema político, que é a estrutura que
alicerça nossa representação, está adequado? A sociedade se enxerga no
conjunto dos parlamentos?
O problema não está apenas no Congresso Nacional, este é somente o
que mais aparece. Está também nos grotões, naquela Câmara Municipal
daquele pequeno e longínquo município, onde alguns vereadores e
prefeitos se elegem prometendo empregos e distribuindo benefícios e,
depois de eleitos, recebem emendas e favores dos candidatos a deputados
estaduais e federais, e assim sucessivamente. Está também no nosso voto
que, por vezes, optamos menos por suas posições e sua plataforma
ideológica e mais pelo candidato que é nosso vizinho. Muitas vezes
pensamos: se é meu vizinho certamente terei facilidade. O resultado para
estes casos é bastante conhecido: depois que se elegem nos dão uma
banana.
É Claro, da mesma forma que ingenuamente tentamos usar aquele voto
para eleger alguém que dê um jeitinho para nós, estamos sendo usados.
Esse parlamentar eleito tem vínculo com quem? Quem ele representa de
fato? Você que votou esperando uma ajudazinha, na maioria das vezes está
fora do jogo.
Tem um (infeliz) ditado popular que diz: “Cada povo tem o governo que
merece”. É mais ou menos dizer o seguinte: olha povo, olha eleitor,
você não serve para nada, contente-se com isso, as coisas nunca
melhorarão. Isto se presta apenas para quem quer se perpetuar no poder e
exercê-lo sem participação. O que faz o nosso voto e, por conseqüência,
a nossa representação não servir para nada, ou melhor, servir aos
usurpadores é o nosso sistema político. Por isso que a Reforma Política
nunca sai.
Venhamos e convenhamos, reforma política é um papo chato. Tenho mais o
que fazer. Tenho que trabalhar, inclusive. O que tenho a ver com isso? A
raiz da questão está diretamente relacionada ao nosso ultrapassado
sistema político. Temos um país do século XXI com uma estrutura política
do século XIX.
Mesmo com direito ao voto universal, a nossa representatividade beira
a monarquia, algo como abolicionistas contra escravocratas. Você acha
que em eleições proporcionais os candidatos mais votados se elegem e os
menos votados ficam de fora? Para quem não sabe, prepare o estômago. Dos
513 deputados federais eleitos em 2014, apenas 35 chegaram lá
exclusivamente pelo desejo dos eleitores. Olhando-se o copo, pela parte
meio vazia, 93% da Câmara Federal é composta por parlamentares que
precisaram de votos alheios para se eleger.
No caso específico de São Paulo apenas dois deputados federais,
Tiririca e Gabriel Chalita, ultrapassaram o quociente eleitoral de 304
mil votos e de quebra, ajudaram outros 68 candidatos paulistas a se
elegerem com suas sobras. Uma pergunta não quer calar: é o povo que vota
errado, como querem nos convencer, ou existe um sistema claramente
distorcido de representação? Além disso, até as ultimas eleições havia
outra variável; o financiamento de campanha.
Neste sistema eleitoral bastavam ter propostas boas e convincentes
para se eleger? A resposta é não. Quem não teve dinheiro para fazer
campanha não se elegeu. Na média, cada congressista que tomou posse em
2015 gastou R$ 1,6 milhão em sua campanha eleitoral. Quem não tinha,
conseguiu quem financiasse.
Este é outro ponto determinante: financiamento privado de campanhas.
No Brasil, até este ano era legal empresas financiarem campanhas.
Pergunta, quando votamos somos movidos pelo quê? Resumidamente vejo duas
motivações, uma nobre e outra nem tanto: a primeira, porque quero algo
melhor para todos; a segunda, por algum interesse próprio. Empresa tem
ideologia? Então o que motiva uma empresa privada a colocar dinheiro na
campanha de alguém? Seja de que partido for. Seria prejulgar admitir que
se uma empresa coloca seu dinheiro em alguma campanha ela quer algo em
troca? Parece-me que não. Lewis Carroll, no século XIX quando escreveu
Alice nos País das Maravilhas,
poderia até admitir que pudesse existir país imune à corrupção, mas
diga-se de passagem que nem ele ousou tanto. Não existe. O que temos que
fazer é coibi-la ao máximo que as instituições forem capazes. Com
instrumentos transparentes de acompanhamento, Corregedorias, Ministério
Público, entidades civis atuantes, arcabouço jurídico adequado.
Aqui cabe uma ressalva: uma das bases da democracia é o Estado
Democrático de Direito, e um dos seus pilares de sustentação é o acesso
de qualquer cidadão à Justiça. Um levantamento produzido pela Associação
Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), em parceria com o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), comprova a falta de defensores
públicos em 72% das comarcas brasileiras. Nessas localidades não existe
serviço de assistência jurídica gratuita para quem não tem condições de
pagar um advogado. Na justiça estamos ainda no período pré SUS.
Uma das grandes virtudes do sistema democrático é que as coisas
aparecem, só assim para corrigi-las. Quem quer acabar com a democracia é
quem quer se aproveitar do obscurantismo. Nestes tempos de polarização,
a pergunta que temos que responder é o que fazer para sermos melhor
representados e para que as mais diferentes matizes políticas e
ideológicas consigam se expressar e canalizar as forças da sociedade
para um parlamento de fato à altura das tarefas.
Tenho defendido veementemente que não podemos perder o foco na
Reforma Política e mesmo ciente que o fim do financiamento privado de
campanhas não resolve tudo, acredito que ajudará para que sejamos melhor
representados num futuro próximo. Sem dúvida, boa parte do foco de
falcatruas e coisas erradas, quando aparece na mídia, recai sobre os
políticos, mas talvez, se todas as categorias profissionais fossem
acompanhadas e monitoradas da mesma forma que são os políticos, temo que
fosse possível atingir o mesmo nível de corrupção.
A corrupção não é um fenômeno recente, muito menos brasileiro, pelo
contrario, temos assistido instituições autônomas que funcionam e assim
deve ser. Mas isso não basta. Se não reformularmos nosso sistema
político e representativo isso tudo se repetirá, como vem se repetindo
ao longo dos anos. Temos que aprender com as experiências de outros
países, as exitosas e as que não lograram êxito.
Em 2010 o mundo foi chacoalhado com a Primavera Árabe, uma onda de
manifestações e protestos no Oriente Médio e no norte da África
reivindicando liberdade e o fim da corrupção. Mas os países árabes não
enfrentaram suas reformas democráticas e o resultado foi que em muitos
países, partidos e lideres fundamentalistas que pregavam soluções fáceis
para problemas complexos venceram as eleições.
Há também o caso da Itália com a Operação “Mãos limpas”, que se
iniciou em Milão e levou ao fim a chamada Primeira República Italiana e
ao desaparecimento de muitos partidos políticos, mas, também, sem
enfrentarem as grandes reformas políticas. Qual foi resultado? Silvio
Berlusconi, um excêntrico magnata italiano que lidera o Partido
Conservador e foi condenado por corrupção e libidinagem.
Política não é futebol, não é São Paulo contra Corinthians. É com a
política que conseguimos mudar a condição de vida das pessoas. É da
prática política que se formam os governos que irão interferir
diretamente nas nossas vidas. E são aqueles grupos sociais excluídos que
mais precisam de governos que produzam políticas públicas distributivas
equânimes, a saúde é uma entre tantas outras.
Temos que cuidar para que oportunistas e diversionistas não criem um
cenário para que o foco principal do que tem que ser corrigido passe
despercebido. Estamos em uma bifurcação histórica. Ou radicalizamos os
fundamentos democráticos, na defesa intransigente do Estado Democrático
de Direito, ou regredimos. Respeito, mas não me somo àqueles que
vociferam que aqui em nosso país nada dá certo, que o Brasil não presta.
Pelo contrário, acho que se não somos os melhores, também não devemos
ser tido como exemplo de país totalitário e medíocre. Somos exemplo
para o mundo com um conjunto de políticas publicas que retirou da
miséria absoluta milhares pessoas em tão pouco tempo. Isso pode não
falar aos corações de alguns que foram privilegiados pela loteria
biológica. O espermatozoide de nosso pai e o óvulo de nossa mãe nos
colocou em famílias que nos proveram de casa, comida e acesso à
educação. Além de sortudos somos privilegiados. Mas isso não nos faz
melhor que ninguém. Nos Estados Unidos as coisas são melhores? Muita
coisa é, mas nem tudo. A defesa do Senhor José Maria Marin,
ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol, por exemplo,
tencionou para que o extraditassem da prisão da Suíça para os Estados
Unidos, e lá está em prisão domiciliar, no
Trump Tower, um dos
prédios mais luxuosos de Manhattan, avaliado em US$ 2,6 milhões. Imóvel
comprado com recursos desviados da entidade. O lamentável acontecimento
faz a justiça norte-americana ser pior ou mais injusta que a nossa? Não
creio. Mas também não devemos nada a ninguém no quesito julgamento/pena.
Às vezes me pergunto por que os brasileiros falam tão mal de nós
mesmos. No fundo acho que não gostam do Brasil. E aqui não vai nenhuma
dose de patriotada, até porque questiono a razão de existirem
fronteiras. Mas então o que fazer? Voltando a Hamlet no seu mais famoso
monologo “…a consciência nos torna covardes”, porque quanto mais
envelhecemos mais temos medo, e quanto mais temos medo, mais tomamos
consciência. O que significa que aprendemos que a vida têm riscos e que a
ignorância, em sentido inverso, pode ser uma benção. Isso pode explicar
porque as ditaduras são beatificadas por alguns e porque, se quisermos
de fato mudar e transformar as coisas, nem sempre as soluções fáceis são
as mais adequadas. Aqueles que sempre apostaram nas soluções fáceis,
geralmente sectárias e intolerantes, também diziam que a juventude, por
via de regra, é alienada. Estavam mais uma vez errados. Que bom. Os
estudantes secundaristas de São Paulo estão mostrando àqueles que estão
envelhecendo sem perder a vontade de lutar que o caminho é segui-los.
Porque um Brasil radicalmente democrático e melhor para todos é
possível, principalmente para quem mais precisa do Estado e de políticas
públicas equânimes.
* GILBERTO PUCCA é Diretor
de Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental do Ministério da Saúde
Sanitarista; Mestre em Epidemiologia (Escola Paulista de Medicina) e
Doutor em Ciências da Saúde (UnB).
(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2016/05/07/400-anos-da-morte-de-shakespeare-democracia-e-golpe/)