quarta-feira, 8 de junho de 2016

O calo que incomoda a todos nós

MARCELO GRUMAN*
 
No início desta semana, dois homens foram presos em flagrante após abusarem sexualmente de duas mulheres, em locais diferentes, em uma das linhas do metrô de São Paulo. Os trens do metrô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) registraram, em 2015, uma média de um caso de abuso sexual a cada dois dias na Grande São Paulo. Entre os meses de janeiro e dezembro do ano passado, foram contabilizados 181 casos, o que equivale um aumento de mais de 20% em relação às 150 ocorrências registradas em 2014. Segundo o delegado responsável pelo Departamento de Capturas e Delegacias Especializadas, o que leva a polícia a classificar uma situação de abuso sexual no transporte público como contravenção ou crime “é a análise do caso concreto feita pelo delegado, tendo por base a gravidade da situação e o fato de o acusado ter agido ou não com violência”. Há, portanto, uma gradação de tipologias aplicadas a situações particulares, desde aquelas em que “o sujeito encosta na mulher”, considerada “importunação ofensiva ao pudor”, até aquelas em que o homem ejacula, “aí é estupro direto”. Pela legislação brasileira, as penas variam de acordo com a conduta delituosa: pagamento de multa para a importunação ofensiva ao pudor; prisão de dois a seis anos para violação mediante fraude (quando o suspeito mente para a vítima, passando-se por outra pessoa, para leva-la a fazer sexo ou praticar outro ato libidinoso com ele); de seis a dez anos em caso de estupro. No metrô de São Paulo, a campanha “Você não está Sozinha” estimula as mulheres a registrarem as agressões.

No Rio de Janeiro, a lei nº. 4.733, de 23 de março de 2006, passou a obrigar as empresas que administram o sistema ferroviário e metroviário do estado a destinarem vagões exclusivamente para mulheres nos horários de pico matutino (entre 6h e 9h) e vespertino (entre 17h e 20h). Os vagões a serem destinados para o transporte exclusivo de mulheres “poderão ser destacados entre os que integram a composição dimensionada para o fluxo de passageiros nos referidos horários de pico, ou adicionadas à composição, a critério da concessionária”. O destaque, ora vejam que surpresa, é representado pela cor rosa. Dez anos após a promulgação da Lei dos Vagões, o Diário Oficial do Estado a republicou com a previsão de multa variando entre R$ 173 e R$ 1.084 ao homem que “ingressar e permanecer no vagão exclusivo”.

Outro dia, indo para o trabalho acompanhado de minha esposa, que seguia para o dela, entramos no vagão destinado a ambos os gêneros. Inadvertidamente, coloquei os pés no “vagão rosa”, estávamos num daqueles trens chineses em que não há separação interna entre as composições. Percebi que entrava em terreno pantanoso e, antes que caísse um raio em minha cabeça, voltei ao espaço que me cabia. Olhei com tristeza para aquelas mulheres, sinceramente, segregadas como uma casta inferior, intocáveis, poluídas, sujas. Ao mesmo tempo, temi pela segurança de minha esposa, tendo que compartilhar o espaço com homens sedentos de sexo, que só pensam “naquilo”. Não estou sozinho, antes que me acusem de ojeriza ao Segundo Sexo, bem acompanhado inclusive de feministas de carteirinha como Marília Moschkovich, que publicou fantástico artigo sobre a questão. Nele, Marília afirma que o fato de apenas países de cultura machista, dentre os quais, Japão, Egito e Irã, terem implantado esse tipo de política pública não é coincidência, ficando claro que além de não resolver nada e reforçar a heteronormatividade e o próprio machismo, os vagões exclusivos ainda fomentam outra forma de opressão de gênero, porque parte-se de três pressupostos.

Em primeiro lugar, os vagões exclusivos culpabilizam as mulheres pelo próprio assédio, a questão sendo abordada como se elas fossem o problema da coisa toda. Ou seja, em sociedades machistas como a brasileira, as mulheres são culpadas pela própria sexualidade – e pela sexualidade dos homens também. Assim, seguindo o raciocínio, quando sofrem agressões, a solução é limitar, fiscalizar e controlar o corpo e a atitude delas. É a velha estória de que fulana foi estuprada porque “estava pedindo, se oferecendo”, afinal de contas, com aquela minissaia era óbvio (na cabeça do delinquente, claro). Em segundo lugar, pressupõe-se a naturalidade do descontrole sexual dos homens, tratando-se o assédio e o estupro como se fossem parte do sexo, como se estivessem relacionados a desejo sexual e não a uma opressão e a uma questão de poder. Daí a minha ironia ao temer pela minha esposa no vagão “misto”. Em terceiro lugar, pressupõe-se que homens têm, necessariamente, desejo sexual por mulheres e vice-versa, comumente chamada de “heteronormatividade”. A separação de homens e mulheres no transporte público, portanto, reforça a ideia de que a heterossexualidade e heteroafetividade são o “normal”, o “natural”, e de que relacionamentos gays e lésbicos são “exceção”, “aberração”. No final das contas, fulmina Marília, “políticas como essa do vagão exclusivo, estão muito mais para Marco Feliciano do que para Simone de Beauvoir”.

A instituição do vagão rosa apenas desnuda o machismo da sociedade brasileira, não o resolve tampouco o mitiga. Ele tapa o sol com a peneira, é um paliativo sem efeito algum para a mudança estrutural da mentalidade dinossáurica daqueles que teimam em acreditar que a mulher e seu corpo existem para uso e abuso independente de sua vontade. Em suas cabeças doentias, manda quem pode, obedece e se submete quem tem juízo. É um autoengano, de boa ou má-fé, semelhante àquela velha situação dos pais que preferem que as filhas tragam seus namorados para casa, onde acreditam terem maior controle sobre atitudes libidinosas, esquecendo-se que o dia tem vinte e quatro horas e que, neste período, em algum momento, o casal de pombinhos pode fazer aquilo que o zelo parental pretende proteger, a dignidade e a honra da moça, ainda que ninguém tenha pergunta à moça se ela quer que sua dignidade e honra sejam protegidas. No caso do metrô, a proteção episódica durante a viagem não se estende, necessariamente, a outros espaços públicos, daí a inocuidade da segregação espacial. A emenda sai pior que o soneto. A campanha pela denúncia das agressões e a prisão dos criminosos são muito mais eficazes, como parece ser o que acontece em São Paulo. Quer manter a imoralidade, mané? Que o faça no escurinho da caverna que você chama de casa.

Há alguns anos, assisti a uma palestra de um sobrevivente judeu do campo de extermínio de Auschwitz. A certa altura, ele afirmou categoricamente que o sofrimento por que passaram os judeus nas mãos dos nazistas não tem equivalente, que foi e será sempre inigualável, nem mesmo os genocídios étnicos perpetrados em países africanos, um dos quais, acrescento eu, fantasticamente retratado pelo jornalista norte-americano Philip Gourevitch no livro Gostaríamos de informa-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias: histórias de Ruanda. É claro que não tenho, enquanto não-tutsi ou não-hutu, etnias que digladiaram em Ruanda, como sentir, subjetivamente, aquilo que os membros dos grupos étnicos sofreram como consequência da perseguição e do preconceito. No entanto, há um sentimento de compaixão, de solidariedade, de compartilhamento do sofrimento pela desumanidade dos algozes, que está acima de diferenças étnicas, religiosas, de gênero, raciais ou outra qualquer.

Não preciso ter fome para saber que “quem tem fome, tem pressa”, como dizia o Betinho. Não preciso sofrer preconceito pela cor da minha pele para saber o quão humilhante isto é. Não preciso ser judeu para ser solidarizar-me com as vítimas judias do nazismo. Não preciso ser mulher para saber o quão degradante é ouvir gracinhas pouco lisonjeiras, assovios e palavras de baixo calão quando se vai mesmo comprar um pãozinho na padaria da esquina. Se é verdade que “cada um sabe onde dói o calo”, também é verdade que há um “calo” comum que pode unir a todos, qual seja, o preconceito, o ódio ao diferente e à diversidade cultural. Cabe ao Estado promover políticas públicas que promovam o encontro e a convivência mais ou menos harmoniosa com o diferente (ninguém é obrigado a gostar daquilo que lhe é estranho, mas é, sim, obrigado a respeitá-lo) e, caso necessário, usar do instituto do monopólio da força para punir quem insistir em desrespeitar regras básicas de vida em sociedades democráticas.

No multiculturalismo, é muito tênue a linha que separa o respeito à diferença e a segregação que pretende protege-la. Promover, hipocritamente, a segregação em nome do respeito à diferença e da própria segurança física do grupo protegido é um tiro no pé.
* MARCELO GRUMAN é Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). Atualmente é administrador cultural da Fundação Nacional de Arte (Funarte).

(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2016/06/04/o-calo-que-incomoda-a-todos-nos/)

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