O que Jamie Olivier e Alex Atala, conhecidos por valorizar
diversidade alimentar, fazem nos comerciais da Sadia e Seara? As
corporações da comida ultraprocessada estarão em busca de novo “nicho”?
Por
Juliana Dias e Mónica Chiffoleau
A parceria entre o conhecido chef inglês Jamie Oliver e a marca Sadia
gerou questionamentos por todos que defendem a alimentação saudável.
Este movimento tem sido considerado uma das grandes tendências
alimentares nas últimas décadas, adotado por cozinheiros, pesquisadores,
agricultores e comedores em geral que compreendem ter suas escolhas
certa influência política, ou seja, a consciência de que, ao escolher um
alimento, estão decidindo qual sistema alimentar querem alimentar.
Jamie Olivier é uma das personalidades que lideram o movimento para
uma alimentação saudável, convidando a todos a entrar na cozinha. Além
dos cardápios, incentiva o consumo de alimentos naturais e orgânicos. Já
a Sadia é uma das marcas da Brasil Foods (BRF), uma das maiores
companhias de alimentos do planeta e líder global na exportação de
proteína animal.
A concorrência entre as empresas por absorver os movimentos do campo
alimentar é acirrada. Na mesma semana que a Sadia anuncia a parceria com
o Olivier, a Seara lança a campanha com o chef brasileiro Alex Atala,
reconhecido internacionalmente como defensor da biodiversidade
brasileira. A figura do chef de prestígio traz segurança quanto ao uso e
qualidade dos produtos, que vêm sendo fortemente questionados por
diferentes grupos da sociedade.
De acordo com
Guia Alimentar
para a População Brasileira, publicado em 2014 pelo Ministério de
Saúde, um dos dez passos para a alimentação saudável é desenvolver,
exercitar e partilhar habilidades culinárias, “O enfraquecimento da
transmissão de habilidades culinárias entre gerações favorece o consumo
de alimentos ultraprocessados”.
O Guia esclarece que alimentos
in natura ou minimamente
processados, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal,
devem ser a base da alimentação. Alimentos in natura são aqueles obtidos
diretamente de plantas ou de animais (como folhas e frutos ou ovos e
leite) e adquiridos para consumo sem que tenham sofrido qualquer
alteração após deixarem a natureza.
Os alimentos minimamente processados são alimentos
in natura
que, antes de sua aquisição, foram submetidos a alterações mínimas.
Exemplos incluem grãos secos, polidos e empacotados ou moídos na forma
de farinhas, raízes e tubérculos lavados, cortes de carne resfriados ou
congelados e leite pasteurizado.
Alimentos ultraprocessados são produtos fabricados com pouco ou
nenhum alimento in natura, mas que levam muitos ingredientes
industriais, de nomes pouco familiares. Biscoitos recheados, salgadinhos
de pacote, refrigerantes e macarrão instantâneo são exemplos desse tipo
de alimento.
São considerados “produtos de conveniência”, que vêm em uma caixa,
podem permanecer meses numa prateleira, podem ser comidos no caminho e
ser servidos sem a necessidade de ligar o fogão, conforme definição de
Charles Mortimer, antigo presidente da
General Foods.
Para que o atributo da conveniência ganhasse cada vez mais adeptos,
Mortimer criou um exército de professores de economia doméstica em 1950,
pagos pela empresa, e lançou a personagem Betty Crocker com o objetivo
de levar ao mercado as virtudes da conveniência. A personagem fictícia
foi convidada para os melhores shows de TV, ajudando a construir um novo
imaginário da mulher na sociedade americana.
Neste novo ideário, a liberação da cozinha era um elemento
fundamental. A justificativa proporcionada pela publicidade afirmava que
usar alimentos preparados ou congelados permitia à mulher economizar o
tempo necessário para realizar outras tarefas importantes como a de
“mãe”, “esposa moderna” e trabalhadora.
Desde os anos 60, algumas mulheres se sentiam culpadas com os
produtos de conveniência por já virem prontos. Essa informação foi
transmitida para a indústria. A partir desse momento existem versões nas
quais quem “prepara” a refeição pode participar incluindo leite, ovos
ou algum outro ingrediente. Será esse o convite do chef, nessa campanha
de expectativa?
Frente às múltiplas críticas recebidas pela parceria de Jamie Oliver
no perfil da Sadia, a empresa tem uma resposta padronizada que diz o
seguinte:
“Queremos trazer uma alimentação melhor
para o povo brasileiro! E com o mesmo objetivo, o Jamie Oliver se juntou
a nós. Iniciamos a nossa parceria há mais de um ano e, desde então,
revimos todos os nossos processos, produtos, fábricas e granjas. Fizemos
uma linha de alimentos congelados que, graças a uma tecnologia de
ultracongelamento, não levam conservantes. A linha de produtos que
estamos preparando com o Jamie contará com ingredientes naturais. Também
vamos aplicar o projeto #SaberAlimenta para as crianças do nosso país e
queremos incentivar o brasileiro a voltar para a cozinha.”
Para quem, como nós, considera que um dos passos para a alimentação
saudável tem a ver com o ato de cozinhar, as frases da Sadia “fizemos
uma linha de alimentos congelados…” e “… queremos incentivar o
brasileiro a voltar para a cozinha” são totalmente contraditórias.
Voltar para a cozinha com uma refeição pronta? Isto é o que oferece um
produto de conveniência. Infelizmente, muitos consumidores estão prontos
para se relacionar com a cozinha desta forma superficial, mediada
prioritariamente pela indústria alimentícia.
Justificando sua parceria, Jamie Olivier
respondeu:
“Estou errado? Talvez. Mas, para mim,
estar dentro dessa máquina, uma empresa que é responsável por 18% do
frango no mundo, é algo positivo. E digo que, certamente, eu poderia
estar ganhando mais dinheiro fazendo outra coisa. É claro, estou
entrando num ambiente estranho, até incestuoso, complicado. Mas em um
ano vamos conversar e eu vou te mostrar o resultado do que fiz.”
Essa resposta nos remete às palavras de Marion Nestle, nutricionista especializada em políticas públicas, no seu livro
Food Politics
(2003, ainda sem tradução em português): “as empresas devem competir
com agressividade por cada dólar gasto em comida. A primeira missão das
empresas é vender produtos. As empresas não são agências de saúde ou
serviços sociais. A nutrição se converte em um fator que para as
empresas só é considerado se puder ajudar a vender. As opções éticas são
muito pouco consideradas”.
Quando uma tendência surge, as empresas definem suas estratégias de
nicho, considerando que as necessidades desse grupo de consumidores
ainda não estão sendo atendidas. Assim, o ato de cozinhar como
revolucionário está no limiar, na zona fronteiriça, trazendo afeto,
compartilhamentos, novas composições. É justamente esse fluxo, essa
fronteira que se pretende capturar, associando o prestigiado chef e a
atividade culinária. Se a tendência é dedicar mais tempo ao preparo das
refeições, então a indústria busca capturar o que está fora de seu
alcance, lançando mão do marketing e da publicidade, trazendo o aval de
nomes de prestígio.
Para quem tem clareza da importância do ato de cozinhar como
revolucionário, Jamie se transformou num garoto propaganda da Sadia.
Muitos de seus embaixadores abandonaram o movimento Food Revolution Day,
criado pelo chef, que por sua vez é patrocinado pela Fundação Bill e
Melinda Gates, uma das principais investidoras no mercado de
transgênicos e biofortificados.
A captura, o nicho que interessa a Sadia, é justamente o dos
consumidores que ainda não compreendem a importância do que defende o
Ministério de Saúde através do Guia Alimentar Brasileiro, quando diz
“procure desenvolver suas habilidades culinárias” e adverte que deve-se
“ser crítico quanto a informações, orientações e mensagens sobre
alimentação veiculadas em propagandas comerciais”
A defesa da cozinha como território de uma práxis, em que se busca
refletir sobre nossa alimentação diária, é feita enfaticamente pelo
jornalista e ativista norte-americano Michael Pollan em seus livros,
entre os quais, o mais recente intitulado
Cozinhar: uma história natural da transformação
(Ed. Intrínseca, 2014). Pollan se propõe a investigar os processos
culinários do fogo, água, ar e terra para demonstrar a necessidade
biológica e cultural que temos de cozinhar nossos alimentos. Em sua
visão, as sociedades modernas terceirizaram uma atividade essencial para
a indústria alimentícia, gerando uma desestruturação nos hábitos
alimentares, provocando uma sucessão de prejuízos ao meio ambiente.
No entanto, o autor aponta para o Paradoxo do Cozinhar: a “escolha
diária do que colocar no prato não se reduz à comida caseira versus
comida industrializada. Podemos estar em algum lugar entre esses dois
polos distintos, que muda constantemente em função do dia da semana, da
ocasião e da disposição.”
O que chamamos de cozinhar, explica Pollan, pode se realizar dentro
de uma multiplicidade, como de fato vem acontecendo há pelo menos um
século, quando alimentos processados entraram pela primeira vez na
cozinha e a definição do que seria “cozinha do zero” começou a mudar.
“No decorrer da semana, a maioria de nós passeia por toda essa
multiplicidade (come fora, usa o pacote de brócolis congelado, a lata de
atum na despensa, a caixa de ravióli comprada na esquina”, justifica o
autor.
A novidade, contudo, está no grande número de indivíduos que agora
passam muitas de suas noites num dos seus extremos, valendo-se em quase
todas as refeições de uma indústria disposta a fazer por eles tudo que
não seja esquentar e comer. E se há a demanda para que o consumidor
participe mais do processo de preparação das refeições prontas,
incluindo um ingrediente de seu gosto para finalizá-la, a disposição
para atender esse desejo é a mesma.
Capitalismo cognitivo
A captura de fluxos é possível graças ao capitalismo cognitivo que, a
partir de informação, obtém conhecimento sobre os consumidores. No caso
do mercado de produtos de massa, podemos exemplificar com um dos
softwares, largamente utilizado pelas empresas líderes no mercado. O
Target Group Index,
criado na Inglaterra em 1968, é um minucioso retrato do comportamento e
dos hábitos de consumo da população, em seus vários segmentos. Presente
no Brasil desde 1999, o estudo é resultado da parceria exclusiva entre
Ibope Media e Kantar Media. Atualmente, essa pesquisa é realizada em
mais de 60 países, totalizando mais de 750 mil participantes por ano. Na
América Latina está presente em nove países: Argentina, Brasil, Chile,
Colômbia, Equador, México, Peru e Venezuela, incluindo também Porto
Rico.
Se a tendência é a comida de verdade, é para lá que as empresas vão
apontar. Como já citamos, o termo já vem sendo apropriado pelas empresas
que produzem ultraprocessados na tentativa de apresentar uma substância
comestível, como diria Pollan, como comida de verdade, ou um produto
saudável.
É claro que para melhorar a saúde a porta certa é a política, como é bem explorado no livro
Food Politics,
de Marion Nestle. Se o chef tivesse procurado uma parceria com a Pepsi e
a Coca Cola, o resultado seria a criação de um outro tipo de
refrigerante “pseudosaudável”, versão aliás que acaba chegar ao mercado
com o nome de Coca-cola verde.
Fechando sua resposta às críticas, Olivier declara:
“para ser bem honesto, seria a coisa mais
fácil do mundo para mim ter minha hortinha orgânica e biodinâmica,
ficar falando sobre o bem que ela faz – e eu acredito mesmo que ela faça
muito bem. Mas orgânicos e biodinâmicos são acessíveis ao britânico ou
brasileiro médio? Não. Então é uma questão estratégica e tática: para
promover mudança em larga escala preciso atuar em larga escala”.
Contudo, as hortas estão desafiando o fenômeno do sistema alimentar
global. Se tem horta, tem alimento orgânico e não precisa ser comprado.
Na localidade de
Les Avanchets,
em Genebra, na Suíça, praticamente todas as casas possuem uma horta
urbana, segundo o fotógrafo e ambientalista francês Yann
Arthus-Bertrand. Cada morador cultiva e tem a cultura de trocar
alimentos orgânicos com os vizinhos, ampliando as possibilidades de
alimentação saudável. E para quem não tem quintal, existem também as
hortas comunitárias, trazendo assim a dimensão política da comida.
A publicidade de alimentos ultraprocessados, assinada por chefs como
Jaime Oliver e de Alex Atala, deve servir para ativar o que Paulo Freire
chama de curiosidade epistemológica, ou seja, um alerta para refletir
na prática alimentar cotidiana, que, ao ser delegada a terceiros, pode
comprometer a existência de sistemas alimentares plurais e múltiplos.
(fonte: http://outraspalavras.net/brasil/surpresa-industria-alimenticia-pretende-se-saudavel/)