quinta-feira, 22 de junho de 2017

No Jequitinhonha, o aquecimento global chegou

Reportagem numa região esquecida. Na cheia, os rios já não enchem as barragens; na seca, não há água potável. Desigualdade e impotência política aprofundam drama
Por Amália Safatle, de Araçuaí, na Página22

Fim de abril e a paisagem no vale ainda é verde. Mas em poucas semanas a folhagem ficará totalmente amarela e cairá. As aguardadas chuvas do último verão ficaram no desejo e resta agora enfrentar os meses secos, até que a esperança se renove no fim do ano.
Já no mapa de vulnerabilidade climática, a cor que aparece é um vermelho intenso. A região do Alto e Médio Jequitinhonha é uma das que põe por terra a ideia do Brasil abundante em água, a potência agrícola, em que se plantando tudo dá. Ali, a mudança do clima maltrata, e muito.
No município de Chapada do Norte, por exemplo, a equação usada para medir a vulnerabilidade do lugar traz um resultado aterrador. Para calculá-la, a plataforma Clima Gerais, voltada para adaptação à mudança do clima, multiplica a sensibilidade (classificada como alta) pela exposição (muito alta) e divide pela capacidade de adaptação (moderada). A conta resulta em vulnerabilidade extrema.
A maior parte do Vale do Jequitinhonha é castigada por secas e enchentes. Com população de aproximadamente 980 mil habitantes, 75% de sua população vive na área rural.
Chapada do Norte e Jenipapo de Minas são dois municípios em situação tão periclitante, que nem as estratégias do governo para garantir o mínimo abastecimento de água à população, animais e plantações , por meio de barragens, estão dando certo.
No mundo das pranchetas de planejamento, as coisas são mais simples: represa-se a água dos afluentes do Jequitinhonha, que enchem na época de dezembro e janeiro, e dela se vive o restante do ano. Por meio das barragens, o poder público controla o fluxo das vazões e das cheias, fazendo com que no período da seca as represas abasteçam as pessoas, os animais e até mesmo projetos de irrigação.
Só que a vida como ela é tem suas complexidades, e uma delas é justamente a irregularidade no regime de chuvas, com seca e calor intensos – ocorrências cada vez mais recorrentes com a mudança do clima. Este ano, por exemplo, as chuvas não abasteceram rios, nem cisternas, nem cacimbas. O nível dos poços baixou. As barragens ficaram mais barrentas e com maior acúmulo de contaminantes.
Fosse o clima esse o único problema, seria de algum modo administrável por políticas de adaptação climática. Mas o que se vê na região é um quadro de vulnerabilidade e desestruturação social, desencadeado pela falta de uma condição básica da existência, que é o acesso à água limpa.
Comunidades remanescentes de quilombos – removidas em 2010 de suas terras de origem às margens do Rio Setúbal para dar lugar à construção de uma barragem – vivem em duas agrovilas construídas pelo governo, mas sem água potável, nem atendimento médico, nem transporte e com difícil acesso à escola. (O Setúbal é um afluente do Rio Araçuaí, que por sua vez deságua no Rio Jequitinhonha.)
Rio Setúbal, em Araçuaí/MG. Foto: Jorge Novais/Caixa Alta
Rio Setúbal, em Araçuaí/MG. Foto: Jorge Novais/Caixa Alta
Para ir à cidade, as pessoas pegam carona no veículo escolar, que sacoleja pelas longínquas estradas de terra. Sofrem com doenças decorrentes do consumo de água suja, como disenteria, desidratação, dor de cabeça, manchas na pele. Em abril, denunciaram que a bomba de água estava quebrada e o caminhão pipa, com os pneus estragados. Dizem que os peixes do rio estão doentes, cheios de vermes. A população vive basicamente de Bolsa Família, pois sem água nem assistência rural, é impossível produzir qualquer coisa para obter renda.
Não bastasse, enfrentam também a disseminação de Aids. Muitas mulheres são chamadas de “viúvas de maridos vivos”, pois estes saem para trabalhar em colheitas de café e cana e ficam fora durante meses, voltando com doenças. Suspeita-se que a Aids seja levada para as comunidades nessas ocasiões, e então se espalhem. O professor municipal e estadual Eliomar Santos Neiva, que leciona para crianças da comunidade, relata casos de promiscuidade quando algumas famílias, sem outra opção de moradia, precisam dividir a mesma casa. Isso influencia também na educação das crianças e adolescentes que, vendo os adultos praticando sexo, iniciam precocemente a vida sexual.
Como era verde meu vale
Antônio Ribeiro Gomes lembra da vida antes da construção da barragem. Podia ser simples, mas não se passava fome nem sede. Ele conta que comia o que plantava nas margens do Rio Setúbal, de águas limpas. E pescava.
Água usada por uma das famílias. Foto: Jorge Novais/Caixa Ata
Água usada por uma das famílias. Foto: Jorge Novais/Caixa Ata
Com a barragem, o governo federal na gestão Lula removeu as famílias para inundar o equivalente a 1.200 campos de futebol. Em contrapartida, ofereceu casas e lotes nas chamadas agrovilas, que receberiam água para irrigar as plantações dos ex-ribeirinhos, e onde as famílias poderiam refazer suas comunidades. Mas o que seriam praças, ruas, posto de saúde não saiu das pranchetas. E a água, quando sai das torneiras, é barrenta e malcheirosa.
Segundo Julio Gabriel Cabezas, engenheiro na Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o sistema de abastecimento e tratamento de água para as águas vilas apresentou problemas de planejamento e execução. Além de ter sido subdimensionado para a quantidade de famílias que cresceu (de cerca de 60 em Jenipapo e 90 em Chapada para 80 e 130, respectivamente), teve erros de construção – por exemplo, o uso de tubulação de PVC quando o necessário era de cobre. Ele diz também que não houve treinamento necessário de pessoal para executar as estações de tratamento de água.
Ponte quebrada. Foto: Jorge Novais/Caixa Alta
Ponte quebrada. Foto: Jorge Novais/Caixa Alta
Houve erros de execução também na construção de pontes que ligam as cidades às comunidades. Segundo o engenheiro, foi usado um madeiramento errado e era necessária a instalação de uma chapa metálica. O resultado é que as pontes foram condenadas e a população terminou de destruí-las, a fim de chamar a atenção do governo para recuperá-las. No estio, é possível atravessar pelo leito seco do rio mas, se as chuvas voltarem, as comunidades ficarão totalmente isoladas.
Há relatos também de que pessoas das comunidades, revoltadas com a falta de água limpa, quebraram tubulações. O sistema ficou ainda mais vulnerável com ligações clandestinas, feitas diretamente nas casas antes do medidor, por conta do receio de algumas pessoas que o governo passasse a cobrar pela água.
Para aumentar o sentimento de desamparo da população local, a Ruralminas, fundação estadual de direito público pela gestão da barragem, foi extinta em setembro do ano passado. “Ficou um hiato aí”, afirma Hamilton Reis, superintendente da Seap, que absorveu alguns quadros da empresa extinta. Reis e Cabezas, por exemplo, trabalhavam há 36 anos na fundação.
Ambos apontam razões políticas para a extinção. “Para se ter ideia, a fundação teve 42 presidentes durante sua existência, alguns ficavam por 2 meses, por 5 meses no cargo. Havia muitos contratos abertos com prefeitos de Minas e com Brasília”, diz o engenheiro. Ele desabafa: “Os políticos em geral estão pouco interessados na região. O comum é a coisa funcionar na base da compra do voto. Aqui se converte voto em saco de cimento”.
Para Cabezas, as comunidades precisam se organizar em uma associação oficial capaz de reivindicar seus direitos, como acesso à água limpa. “Mas as pessoas mais bem preparadas acabam indo embora daqui.”
Uma reunião entre as comunidades e a Seap está marcada para final de maio. Entre lideranças que despontam nas agrovilas, estão Edriana Soares, Maria de Cássia Moreira e Fernando Agostinho Barbosa, que se ligou ao Movimento de Atingidos por Barragens (MAB).
Julio Cabezas e Hamilton Reis contam que, mesmo quando estava em operação, a Ruralminas não tinha especialista em barragens. Seu objetivo era promover o desenvolvimento e a infraestrutura rural. “A Copanor [Serviço de Saneamento Integrado do Norte e Nordeste de Minas Gerais] deveria assumir o saneamento”, defende Reis.
Água de beber
Seu Antonio e a família. Foto: Jorge Novais/Caixa Alta
Seu Antonio e a família. Foto: Jorge Novais/Caixa Alta
Alguma solução definitiva que venha do poder público é o que mais deseja o morador Antônio Ribeiro Gomes. Com 8 filhos para cuidar e a esposa acometida por esquistossomose, Gomes não pode sair da agrovila para trabalhar em outras regiões. Ele atribui a doença da mulher à qualidade de água, enquanto mostra um copo do líquido turvo que recebe em casa (veja neste vídeo). Segundo Gomes, as crianças viviam doentes também.
Mas ele não precisa mais usar essa água para dar de beber à família e nem para tomar banho: uma saída, ainda que paliativa, faz com que todas as famílias das agrovilas tenham água limpa. Isso por conta de uma iniciativa de uma empresa privada.
Trata-se do programa Água Pura para Crianças, uma ação de responsabilidade social da multinacional de higiene P&G. Desde 2014, a empresa distribui em regiões isoladas no Brasil sachês contendo 4 gramas de um pó que, misturado a 10 litros de água suja durante 5 minutos, faz a sujeira decantar, com a ação de um agente coagulante (sulfato ferroso). Depois basta filtrar a água em um pano limpo, e deixar o agente bactericida do sachê (hipoclorito de cálcio) agir por mais 20 minutos. Ou seja, em cerca de meia hora, a água está purificada. O purificador não limpa água contaminada por metais pesados.
Segundo a empresa, a tecnologia, desenvolvida em parceria com a Universidade de Cambridge, já foi levada desde 2004 para comunidades distantes em 85 países e permitiu purificar 11 bilhões de litros de água suja, com investimento global de US$ 100 milhões. O custo maior é na logística de distribuição dos sachês, hoje fabricados em Cingapura.
No Brasil, a iniciativa atende a 175 comunidades em 9 municípios, entre os quais de Chapada do Norte e Jenipapo de Minas, em parceria com a organização Child Funde. E atende também comunidades ribeirinhas na Amazônia, em parceria com a Fundação Amazonas Sustentável (FAS). As organizações parceiras têm o papel de distribuir os sachês nessas regiões distantes e também fazer com que a iniciativa seja abraçada pelas comunidades, desde a preparação até o descarte correto do produto. É recomendada a disposição dos flocos de sujeira no lixo ou vasos sanitários, evitando que crianças e animais tenham acesso.
Segundo a Child Fund, no início houve até estranhamento por parte da comunidade em relação ao fato de a água ficar transparente. Havia crianças que só a conheciam como um líquido de coloração amarronzada, e recusavam-se a beber a água cristalina.
Paliativo
Questionada pela reportagem do porquê de não abrir a patente do purificador sachê, a P&G respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que sua produção requer uma série de controles bem minuciosos de manufatura, como por exemplo da temperatura e umidade, entre outros. Por isso, alega, seu processo de produção é controlado.
Vocação econômica
Para que não necessite mais de paliativos, regiões como a do Jequitinhonha ainda precisam encontrar a vocação econômica que leve ao desenvolvimento. Segundo Cabezas, Araçuaí, cidade-polo da região, chegou a receber três projetos “bacanas” – indústria de cachaça, fruticultura irrigada e piscicultura. Mas nenhum dos três foi para frente. Ele volta a responsabilizar os políticos pela falta de interesse no desenvolvimento local. O projeto de piscicultura, inclusive, teria apresentado problemas de ordem sanitária.
Falando em peixe, o que muita gente não sabe, ou não lembra, é o significado de Jequitinhonha. Então segue abaixo uma versão etimológica, segundo o portal onhas.com, encontrada no jornal A Voz do Serro, de 31 de janeiro de 1913:
“A despeito do estado em que se encontra, extraímos um trecho da matéria ‘Indigenismos’, de Serrano Pristino, onde se vê a etimologia da palavra Jequitinhonha, a mais convincente das que vimos até o momento. Ele decompõe o nome do rio desta forma: jiqui-itá-hy-nhonha. Onde jiqui é jequi, armadilha para pegar peixes, ou “covo afunilado tecido de taquaras, o qual, cheio de iscas se lança no rio com o fim de se apanhar peixes vivos”. O nome jequi, por sua vez, vem i-ique-i – “o em que se entra”. Itá é partícula designativa de plural, que transforma jequi em jequis. Hy, que se pronuncia aspirado, mais para “ri” que para “i”, significa rio, e nhonha é sumir. Logo Jequitinhonha é o rio em que os jequis somem, por estarem pesados com os peixes capturados. Esse significado concorda com a etimologia popular que formou o híbrido no jequi tem onha, onde onha é peixe, logo no jequi tem peixe.”
Mas isso foi muito tempo atrás.

(fonte: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/no-vale-do-jequitinhonha-o-aquecimento-global-chegou/)

Nenhum comentário:

Postar um comentário