domingo, 4 de fevereiro de 2018

Nas mãos de quem nós estamos: 'Médicos são liberados para a vida profissional sem controle de qualidade', diz Drauzio Varella

Havia passado batido pelo artigo do doutor Drauzio publicado na Folha há quase um mês. É devastador. Mostra nas mãos de quem estamos, que tipo de médico está sendo formado anualmente no Brasil e, pior, absolutamente sem controle, exceto pelo Conselho de São Paulo, que aplica uma prova em que mais da metade é reprovada ano a ano ("temas gerais de grau intermediário de dificuldade", doutor Drauzio) , mas sem resultados práticos, porque não é requisito para o exercício da profissão e é facultativa.

Com faculdades particulares cobrando mensalidades que vão de R$ 5 mil a R$ 16 mil, total falta de controle sobre o que produzem, como esperar algo além de (com raras, e cada vez mais raras, exceções) uma fábrica de coxinhas?

Somos vice-campeões mundiais em número de faculdades de medicina. Temos 305. A Índia é a primeira colocada com cerca de 400 faculdades, para uma população seis vezes maior do que a nossa. Na China há 150 faculdades para 1,3 bilhão de habitantes; nos Estados Unidos, 131 para 300 milhões. 

Em 1997, tínhamos 85 escolas médicas. Em 20 anos mais do que triplicamos esse número, graças à explosão das escolas particulares que hoje correspondem a mais de 60% do total, a um custo mensal que varia de R$ 5.000 a R$ 16 mil, por aluno. 

Há 13 anos, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) realiza exame teórico, facultativo, para os doutorandos do Estado. Apesar de a prova abranger temas gerais de grau intermediário de dificuldade, são reprovados mais da metade dos alunos. 

Não é difícil explicar: 
1) No país, não existem professores com formação acadêmica em número suficiente. 
2) As instalações e os laboratórios de boa parte das faculdades são inadequados para o ensino das cadeiras básicas. 
3) A maior parte das faculdades autorizadas pelo MEC não conta com hospitais-escolas dignos desse nome. 
4) A expansão agravou a falta de vagas para a residência médica, que hoje mal atendem metade dos recém-formados. 

Alunos com preparo deficiente são reprovados nos concursos para residência, fase essencial para o aprendizado clínico. Vivemos um paradoxo: enquanto os melhores alunos investem mais cinco anos na formação, uma legião de despreparados vai atender gente doente. 

A OAB enfrenta o problema com o exame da Ordem, sem o qual o advogado não exerce a profissão. Se a OAB considera esse procedimento essencial, com muito mais razão deveria existir uma lei semelhante para os médicos. 

O mercado tem mecanismos para se livrar do advogado incompetente, enquanto os médicos são liberados para a vida profissional sem o menor controle de qualidade. Por acaso, quem vai ao SUS ou sofre um acidente na estrada pode selecionar o médico que vai atendê-lo? 

O argumento de que temos profissionais em número insuficiente e que o aumento de vagas servirá para compensar essa falta é infantil: nossos médicos estão mal distribuídos. Senão, vejamos: 

1) A julgar pela média do país, não estamos tão mal: 2,1 médicos para cada mil habitantes, contra 2,5 nos Estados Unidos, 2,4 no Canadá e 2,2 no Japão; 
2) O problema é que 55% deles trabalham no Sudeste, o triplo da região norte. No Maranhão há apenas 1,3%; 
3) Nas 27 capitais estão concentrados 55% dos profissionais. Os demais ficam responsáveis por 5.543 municípios. 

A formação médica completa exige seis anos de curso em período integral e mais cinco anos de residência. Depois de investir tanto tempo e recursos financeiros, quantos se interessarão em mudar para cidades pequenas, sem dispor de uma carreira organizada no serviço público (como a dos juízes, por exemplo), recursos técnicos e instalações mínimas para a prática da profissão? 

De que cartola tiraram a ideia de que filhos de famílias em condições de pagar em média R$ 6.000 a R$ 7.000 por mês estarão dispostos a abandonar as comodidades da vida urbana, para atender ribeirinhos na Amazônia, lavradores no interior do Maranhão ou conviver com a violência das comunidades periféricas das cidades brasileiras? 

O Cremesp propõe que os alunos de medicina sejam submetidos a avaliações a cada dois anos, para que as falhas na formação sejam corrigidas a tempo. Os diplomados fariam um exame nacional obrigatório, por lei. Os reprovados voltariam para cursos de reforço nas faculdades em que estudaram. 

Em pouco tempo, escolas com índices altos de reprovação seriam fechadas pelo MEC. 

Não conheço um médico que não esteja preocupado com a qualidade dos profissionais que essas escolas medíocres despejam no mercado. Não conheço um que não seja a favor da avaliação obrigatória. Duvido que você, leitor, seja contrário. 

Se todos concordam que um exame de suficiência semelhante ao que o Cremesp realiza ajudaria a proteger a sociedade da incompetência de médicos mal formados, quais interesses políticos e financeiros impedem que uma lei com essa exigência seja aprovada? 

Drauzio Varella - Médico cancerologista, dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Um dos pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em prisões.

(fonte: http://blogdomello.blogspot.com.br/2018/02/nas-maos-de-quem-nos-estamos-medicos-sem-controle-de-qualidade-dr-drauzio.html) 

Um comentário:

  1. Concordo totalmente com a análise do Drauzio Varella. Não dá para confiar na competência dos médicos recém formados. Aqueles que fazem residência médica, são acompanhados por seus professores, da área de especialização, à distância. Minha irmã, médica, que faleceu há 3 anos, recebia todas as manhãs, visitas dos residentes e ficava indignada com o boletim médico, via celular, que os jovens passavam aos seus professores. Muito triste.

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